“Sonhei que estava sendo perseguida por uma espécie de monstro. Eu tentava escapar de lá,
mas o monstro tinha saído da casa de um amigo,
que já tinha morrido, o que me assustou muito.”
Se perguntada acerca da origem do trecho acima, a leitora provavelmente pensaria que se trata de um sonho relatado por alguém. En-tretanto, “algo”, e não “alguém”, está por trás desse texto: ele foi criado por um modelo de Inteligência Artificial, conhecido como GPT-2 (Generative Pre-Training Transformer), uma versão um pouco mais antiga do modelo Cha-tGPT, famoso nos últimos meses devido a suas habilidades com linguagem natural.
Esses modelos são chamados “modelos de linguagem”, e podem ser descritos como grandes Redes Neurais Artificiais (um tipo de modelo matemático inspirado em cérebros biológicos) que foram treinadas em um enorme conjunto de textos escritos em linguagem natural. O relato ar-tificial foi gerado por um modelo treinado em textos da Wikipedia em língua portuguesa, que foi então alimentado com um conjunto de relatos de sonhos fornecidos por humanos.
Coletado durante a pandemia no Brasil, esse conjunto de sonhos engloba cerca de 1300 relatos, em que temas como a morte, a do-ença, o ambiente familiar e sentimentos de angústia são predomi-nantes. Esse viés se torna evidente nos textos gerados pelo GPT, que aprendeu a produzir relatos de sonhos que se aproximam dos sonhos reais, não só na temática como também na forma como são escritos.
“Estava fugindo de algo, mas me divertindo com aquilo.
Corria, me escondia, fugia.
De repente vejo do que estou fugindo e é minha mãe.”
O treinamento do modelo é feito separando o conjunto de so-nhos em duas partes: uma para o treinamento em si, e outra para calcular uma métrica chamada perplexity, que mede a surpresa do modelo quando confrontado com um texto. Acostumado com os artigos da Wikipedia, o GPT utilizado indica uma alta perplexity para os relatos de sonhos antes de ser treinado com eles. Após o treina-mento, a métrica cai pela metade: aquilo que antes era surpreendente passou a ser melhor entendido pelo modelo. Antes de ser apresen-tado aos sonhos, o modelo tem dificuldades em gerar relatos coerentes:
“Sonhei que eu estava indo viver com a avó, mas eu disse:
‘Você não pode ter que mudar’. Eu me disse:
‘Não, eu acho que a mãe é a melhor coisa para um rapaz.”
Esse exemplo mostra uma espécie de pastiche, uma imitação grosseira, que não teríamos dificuldade de identificar como gerado por máquina. Parece um texto sem sentido, mas não exatamente um sonho. Já o sonho do monstro, relatado anteriormente, provavelmente passaria facilmente por um relato humano. O que parece estar em jogo aqui?
Uma característica dos sonhos é que eles admitem uma dimensão meio sem sentido, absurda. Sonhos são, na maior parte das vezes, produções que exigem um método de leitura e interpretação, que precisam ser decifrados. Eles não costumam entregar a chave de seu sentido, a não ser a partir de algum método de leitura.
A humanidade tem tentado decifrar sonhos desde a aurora dos tempos. Todas as culturas humanas desenvolveram um ou mais de um sistema de leitura e interpretação. Muitas vezes, métodos simbólicos, calcados em mitologia, religião e assim por diante. Na cultura ocidental moderna, profundamente laicizada, o método mais conhecido de interpretação de sonhos foi proposto por Sigmund Freud, no início do século XX. Um século mais tarde, apesar das controvérsias que sempre evoca, ainda é um dos mais fecundos disponíveis.
Uma das descobertas de Freud é a de que o sonho deve ser lido como um rébus, isto é, como um enigma pictográfico. Devemos ler um sonho como um texto, e não devemos nos enganar pela profusão de imagens sem sentido que nele brotam. De cada sonho, devemos extrair uma lógica textual subjacente.
Até que ponto a máquina é capaz de fazer isso? Sonhos são produtos fortemente singulares, embora em períodos como guerras ou pandemias, a dimensão coletiva do sofrimento psíquico se infiltre de forma mais perceptível no tecido do sonho. As máquinas aprendem rapidamente, o que nos fascina e nos assusta. Elas frequentemente nos surpreendem, ultrapassando limites que julgávamos intransponíveis. A cada avanço da máquina é o próprio humano que está em jogo. Tudo indica que a IA consegue produzir relatos de sonhos bastante verossímeis. Mas que desejo humano os sonhos artificiais realizam?
QUEM SÃO OS AUTORES
GILSON IANNINI
Gilson Iannini é psicanalista e professor do Departamento de psicologia da UFMG.
JOÃO PEDRO CAMPOS
João Pedro Campos é engenheiro de sistemas (UFMG) e pesquisador em Inteligência Artificial.