Raramente me lembro dos meus sonhos e, durante anos, eles me pareciam banais. Eu não conseguia chegar a compromissos devido a imprevistos no caminho ou precisava voltar à escola mesmo depois de adulta. Minhas amigas me contavam seus sonhos com paisagens desconhecidas, cenas dignas de filmes de ação, e eu me perguntava se a simplicidade de minhas experiências oníricas era um sinal de falta de imaginação.
No entanto, os sonhos que orientavam minhas escolhas e esforços quando estava acordada eram criativos. Movidos pelo desejo de me tornar escritora, de encontrar pessoas com quem pudesse compartilhar o amor pela leitura e pelos livros. Sempre me interessaram os sonhos que afetam a realidade. Quantas coisas reais foram sonhadas antes ganharem existência?
A intenção de escrever poemas que possam constituir um espaço de liberdade me levou a ler sobre os sonhos, pois eles me parecem uma possibilidade de ser livre que ainda não sabemos navegar. Em um mundo cheio de desigualdades, diante de emergências climáticas e ameaças autoritárias, sonhar com outras formas de viver me parece necessário. A possibilidade começar a realizar sonhos de convivência e cooperação.
Com o que sonham as mulheres negras? Quais de nossos sonhos individuais e coletivos nos parecem realizáveis? Como a nossa imaginação pode contribuir para a criação de sociedades mais igualitárias? Em que medida a violência do machismo e do racismo dificulta que sonhemos com muito mais do que a sobrevivência ou futuro melhor para as próximas gerações?
As leituras de A queda do céu, de Davi Kopenawa, O oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro e O desejo dos outros, de Hanna Limulja me apresentaram a perspectiva do sonhar como uma habilidade que pode ser desenvolvida. Mais do que devaneios ou a elaboração de processos inconscientes, os sonhos são uma forma diferente de experimentar a vida.
Tenho me perguntado se o capitalismo tardio tenta deliberadamente empobrecer nossos sonhos, pois o cinismo desmobiliza o de-ejo de mudança. O ritmo estressante dificulta o sono, o excesso de imagens e estímulos saturam a nossa percepção e cultura pop nos oferece fantasias criadas dentro de um imaginário colonial.
Kopenawa observa que os não-indígenas sonham com seus objetos, enquanto que os povos das florestas sonham com os outros, que podem ser seres humanos, árvores, animais, rios e espíritos. Talvez aprender a sonhar de outras maneiras seja um caminho para descolonizar nosso pensamento e nossa imaginação. Querer sonhar com tudo o que é vivo pode nos ajudar a nos ver como parte da natureza e a estabelecer relações com o meio ambiente e com as pessoas sem repetir as velhas dinâmicas de exploração.
Reaprender a sonhar poder ser um meio para um novo modo de viver.
QUEM É STEPHANIE BORGES
Stephanie Borges é poeta. Seu livro de estreia ‘Talvez precisemos de um nome para isso’ recebeu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura.
Publicou ensaios nas revistas Serrote e Zum.