Ilustração: Camilo Martins
Suelen Siqueira Julio é professora do Departamento de História do Colégio Pedro II, tem doutorado em História pela Universidade Fede-ral Fluminense (UFF), com curto período de investigação na Universidade de Lisboa. É mestra em História pela UFF, instituição na qual obteve também os graus de Bacharelado e Licenciatura em História. Tem experiência nas áreas de História do Brasil e da América na Época Colonial, com ênfase em História Indígena. Sua pesquisa de mestrado foi contemplada com o 9º Prêmio CNPq Construindo a Igualdade de Gênero (2014) e publicada como livro sob o título “Damiana da Cunha: uma índia entre a ‘sombra da cruz’ e os caiapós do sertão (Goiás, c. 1780-1831)”, pela Eduff. Mais recentemente, sua tese “Gentias da terra: gênero e etnia no Rio de Janeiro colonial” recebeu menção honrosa no VII Premio de Investigación a Tesis Doctorales Iberoamericanas, Fun-dación Academia Europea e Iberoamericana de Yuste (Espanha).
O QUE TE FASCINA NA SUA PESQUISA?
Sou pesquisadora na área de História Indígena, com ênfase nas mulheres indígenas. Meu interesse pelo tema começou com uma bolsa de Iniciação Científica, com a professora Elisa Frühauf Garcia (UFF), que foi minha orientadora até o doutorado! A convite da Elisa, em meados de 2010, comecei a pesquisar temas relacionados aos povos indígenas na América colonial.
Naquela época, não era um tema muito estudado na UFF e, se eu não tivesse recebido tal convite, talvez eu nunca teria enveredado por um assunto que se mostrou tão fascinante para mim. Num primeiro momento, aceitei a pesquisa principalmente por representar a oportunidade de obter uma bolsa, que me manteria fora de subempregos, possibilitando que eu pudesse custear gastos como xerox, alimentação e passagens. Contextualizando: fui uma estudante muito pobre, vinda da periferia da periferia, ou seja, nascida e criada em Jardim Catarina, bairro da cidade de São Gonçalo, Rio de Janeiro. Fruto de uma escolarização precária em escolas estaduais localizadas no Catarina, cheguei com muita dificuldade e muita luta (coletiva e individual) à universidade. E precisava me manter ali. Pois bem, a participação na pesquisa me ajudaria nisso. Com o passar do tempo, das leituras bibliográficas e das pesquisas no arquivo, tomei um grande gosto pelo tema da História Indígena e pelo ofício do historiador.
Decidi que minha monografia de final de curso seria sobre indígenas. E, como eu já nutria o desejo de estudar história das mulheres, conversei com a Elisa Garcia sobre ela ser minha orientadora e sobre qual tema poderia unir minha paixão antiga pela história das mulheres com meu novo amor para com a história indígena. Foi aí que surgiu o nome de Damiana da Cunha.
Em conversa com o professor Ronaldo Vainfas, a Elisa ouviu sobre o caso da Damiana que, segundo Vainfas, daria um ótimo tema de monografia ou mesmo doutorado. Fui atrás de saber quem seria essa pessoa. Damiana viveu na região da capitania de Goiás, entre o final do século XVIII (c. 1779) e inícios do XIX (1831). Foi uma indígena caiapó que viveu um momento em que os luso-brasileiros buscavam atrair os caiapós para o meio dos brancos. Nesse processo, Damiana da Cunha se tornou uma liderança indígena respeitada entre brancos e caiapós em inícios do século XIX. Vocês podem conferir mais detalhes sobre isso no meu livro.
Depois de estudar a Damiana na monografia e no mestrado, comecei a pensar no doutorado. Quis sair de Goiás e vir estudar o local onde nasci, o estado do Rio de Janeiro. Busquei estudar os modos pelos quais as mulheres indígenas foram inseridas na sociedade colonial do Rio, tanto a cidade quanto a capitania. Tive contato com uma realidade multifacetada, que em nada corresponde aos estereótipos que costumam pesar sobre tais mulheres. É comum que suas trajetórias sejam invisibilizadas ou relegadas a ideias como “elas foram objetos sexuais”, “elas foram as mães dos filhos dos portugueses”, “as mães dos ‘primeiros brasileiros’”.
Ora, se é verdade que os ventres indígenas geraram filhos dos colonizadores – seja por relações forçadas ou consentidas – é verdade também que suas histórias não se reduzem a isso. As mulheres indígenas atuaram, no decorrer de toda a história desta terra que hoje se chama Brasil, de diversas formas: foram líderes políticas, trabalhadoras, musicistas, catequistas, intérpretes de línguas etc. Ficaria feliz se vocês que leem esta entrevista fossem ler minha tese, na qual consegui preencher muitas páginas sobre os modos pelas quais as mulheres indígenas viveram, amaram, sonharam e lutaram por seus projetos de futuro em diversos momentos da história.
Fica para nós o recado de que as mulheres e os homens dos povos originários fizeram, fazem e farão parte de todos os momentos de nossa história. E elas e eles nos ensinam que se queremos um futuro devemos lutar por ele.