Você realmente entende sobre o que os movimentos sociais se posicionam?
Quando uma pessoa diz que não tem preconceitos e que não discrimina outras pessoas a partir de uma ou mais características que as reúnem em grupos vulnerabilizados socialmente, certamente ainda não entendeu sobre o que se trata o debate proposto pelos movimentos sociais. Muito provavelmente, ela entende que não ter preconceitos e discriminações é não chamar outras pessoas por um termo já reconhecido como pejorativo pelos movimentos sociais.
É óbvio que não utilizar de forma pejorativa uma ou mais características de outra pessoa para desqualificá-la enquanto indivíduo é um importante avanço no processo de desconstrução do preconceito e da discriminação. Entretanto, para que o seu posicionamento se efetive de fato na sociedade, é necessário entender que se trata do outro e não é apenas sobre ela.
Na verdade, o que essa pessoa precisa compreender é que a pauta dos movimentos sociais se dá a partir da compreensão de mecanismos estruturais e estruturantes que determinam as oportunidades ou a falta delas, de acordo com o grupo social com o qual ela se identifica na sociedade.
Portanto, uma pessoa, quando diz que não é preconceituosa e que não discrimina outra pessoa, quer dizer que ela ainda não entendeu de fato o conteúdo e a abordagem das pautas dos movimentos sociais e precisa cumprir a travessia pelo caminho do letramento dessas pautas para ampliação da sua compreensão sobre a demanda que fundamenta a constituição desses movimentos.
Por exemplo, considerando a minha realidade enquanto uma pessoa com deficiência que utiliza cadeira de rodas: é bem provável que alguém que diz não ter preconceito e não discriminar a pessoa com deficiência sinta que não poderia me convidar para tomar um café na sua residência porque certamente não haverá acessibilidade suficiente para suportar a minha permanência no seu lar.
Com isso, eu estou dizendo que mesmo a pessoa desejando a minha presença e mesmo ela se posicionando como anticapacitista ainda assim ela não poderá me receber na sua casa se considerarmos a falta de acessibilidade na maioria dos domicílios do país e principalmente nos banheiros dos lares brasileiros.
E sabe o que é mais interessante nessa constatação? É que quem define a condição para a pessoa poder ou não se relacionar comigo em sua própria residência não é ela, mas o capacitismo. Do mesmo modo que o capacitismo também vulnerabiliza a relação dessa pessoa com o seu lar, se considerarmos que a maioria da população de pessoas com deficiência do Brasil é formada por pessoas sem deficiência que se tornaram pessoas com deficiência após uma doença, um acidente, uma violência ou após se tornarem pessoas idosas.
Na verdade, o que essa pessoa precisa compreender é que a pauta dos movimentos sociais se dá a partir da compreensão de mecanismos estruturais e estruturantes que determinam as oportunidades ou a falta delas, para a pessoa de acordo com o grupo social a que ela seja identificada na sociedade.
Ou seja, se ela se tornar uma pessoa com deficiência que utiliza cadeira de rodas por quaisquer das razões citadas anteriormente, o primeiro problema que ela enfrentará será a falta de acessibilidade no seu lar.
Disto conclui-se que as estruturas e as relações sociais não são concebidas prevendo a presença e a participação da pessoa com deficiência e quando as suas presenças são previstas, ocorrem de maneira a segregar as pessoas com deficiência em nichos exclusivos para elas.
Isso ocorre nas escolas especiais, nas paralimpíadas, nas poucas unidades acessibilizadas nos imóveis e até mesmo na tentativa de cumprimento da lei de atendimento prioritário.
Como a sociedade realiza a Lei de Atendimento Prioritário?
Ela define um balcão, um caixa, um guichê específico para atendimento da pessoa com deficiência. Dessa forma, a sociedade diz para a pessoa com deficiência que ela pode participar daquele espaço específico, aponta para toda a sociedade que ali se trata de pessoas com deficiência. O pior de tudo é que, além de discriminar e segregar a pessoa com deficiência, a sociedade não consegue sequer realizar o atendimento prioritário porque quando se observa esses caixas, balcões ou guichês, geralmente se percebe uma fila interminável de prioridades.
Ora, eu posso estar enganado, mas penso que atendimento prioritário ocorre quando qualquer caixa, balcão ou guichê atenda a pessoa que faça jus à lei de atendimento prioritário assim que esteja disponível.
Entretanto, precisamos problematizar ainda mais essa prática da sociedade identificada nas escolas especiais, nas paralimpíadas, nos poucos imóveis acessibilizados e nos caixas, guichês e balcões de atendimento prioritário a partir do debate dos movimentos sociais para entendermos que esses mecanismos que a sociedade está celebrando por inclusão, na verdade, não é inclusão.
Se considerarmos a perspectiva da interseccionalidade que reconhece que uma pessoa não é apenas um marcador social e sim a intersecção entre vários marcadores sociais, eu, como um homem negro com deficiência, reconheço a delimitação de espaços públicos e privados para a participação social das pessoas com deficiência não como inclusão mas sim como apartheid.
E é isto o que a sociedade está celebrando por inclusão. Apartheid!
O mesmo apartheid que normatiza a presença das pessoas negras nas relações servis da sociedade e a ausência dessas pessoas nos espaços de poder, mas não por falta de competência ou qualificação dessas pessoas e sim por racismo.
O debate proposto pelos movimentos sociais e suas interseccionalidades é tão necessário e urgente na sociedade que mesmo eu sendo um homem negro com deficiência e que sofre racismo e capacitismo, não posso dizer que não sou uma pessoa preconceituosa porque eu não estou isento de praticar outras violências como machismo ou lgbtfobia com outras pessoas, por exemplo.
Por isso, é muito importante que principalmente a pessoa que ainda diz não ser preconceituosa e que não discrimina outras pessoas perceba que esse debate não é sobre individualidades e que ela precisa identificar primariamente a sua localização na geografia social para entender que, mesmo sem saber ou sem querer, ela pode perpetuar violências.
QUEM É O AUTOR?
Marcelo Zig
É filósofo, palestrante, consultor de diversidade e inclusão, provocador social e ativista dos direitos humanos.
Idealizador do Projeto “Mergulho Cidadão” – campanha preventiva aos riscos da terceira causa de lesão medular por acidente no Brasil, fundador do coletivo de pessoas negras com deficiência – Quilombo PcD, speaker do TEDx Pelourinho, curador do TEDx Salvador, primeira Pessoa Negra com Deficiência Mestre de Cerimonia de um TEDx no planeta, mestre de Cerimônia do IV Congresso Mundial de Educação do Sesc/RJ, mestre de Cerimônia do Primeiro Fórum Nordeste de Economia Circular, porta voz da Inklua consultoria de recrutamento e seleção de pessoas com deficiência para o trabalho formal, colunista da Rádio Boa Nova/Guarulhos, coordenador pedagógico da formação em ativismo de direitos humanos para jovens lideranças com deficiência – “Inclusive Nós”, painelista do CONARH 2023, coidealizador da Primeira Parada do Orgulho da Pessoa com Deficiência do Brasil.
FIQUE POR DENTRO
CAPACITISMO
É toda forma de preconceito e discriminação da pessoa em razão da deficiência. Chamar alguém de forma pejorativa por causa da deficiência ou não promover os recursos de acessibilidade para o pertencimento social da pessoa com deficiência é crime previsto por lei e equiparado ao crime de racismo.
ANTICAPACITISMO
É toda ação que tem como perspectiva o reconhecimento da humanidade e cidadania da pessoa com deficiência respeitando as especificidades do seu corpo.
ACESSIBILIDADE
São recursos que permitem a todas as pessoas (e não uma necessidade exclusiva da pessoa com deficiência) o acesso a espaços e ambientes da sociedade com autonomia e segurança.
PARALIMPÍADAS
Evento similar as olimpíadas em que as modalidades esportivas são protagonizadas por pessoas com deficiência.
APARTHEID
Foi o regime político que definia os espaços em que as pessoas negras poderiam ocupar na África do Sul. A segregação de pessoas negras na África do Sul foi oficializada como política de governo em 1948 com o pastor protestante Daniel François Malan e durou até 1994 com a eleição de Nelson Mandela para a presidência do país.
MOVIMENTOS SOCIAIS
São ações coletivas mantidas por grupos organizados da sociedade que visam lutar por alguma causa social. Os movimentos sociais são de extrema importância para a formação de uma sociedade democrática tendo em vista possibilitar a inserção de cada vez mais pessoas na sociedade de direitos através da legitimação e da cidadania frente ao Estado.