Este conto se integra ao universo do romance Silêncios Infinitos (Editora Draco, 2023) e acompanha a primeira colônia terráquea fora do sistema solar.
– É na ponta dos dedos – Dira sussurrou. – Feche os olhos. Concentre-se. Respire. Não lute, já está em você. Simplesmente assimile as informações que chegam. É um novo sentido.
Liu queria seguir as orientações, porém uma parte sua continuava assustada. Os conhecimentos que tinha sobre fungos assaltavam sua mente, mas seus filtros mentais estavam tão altos que tudo lhe parecia mecânico, como se estivesse lendo planilhas. Faltava organicidade. Algo que, agora, sobrava em Dira e, por isso, ela guiava.
Dira e Liu integravam um grupo de exploradores astronautas extremos. Um evento climático catastrófico os obrigara a sair da base espacial em que viviam e buscar abrigo nas cavernas do planeta que tentavam colonizar. Talvez, Liu devesse ter percebido que as mudanças seriam mais drásticas do que poderia imaginar a princípio. Mas, se imaginasse, será que teria apoiado a ideia de buscarem segurança seguindo o mapa criado pela parceria com grupos fungi e protistas?
A primeira surpresa veio ao alcançarem as cavernas. Em lugar de um espaço árido e quase estéril, o grupo se deparou com um ambiente povoado por estruturas gigantescas formadas por colônias de seres vivos. Nenhum deles jamais tinha visto algo assim. Haviam lido, claro, descrições de seres ancestrais que talvez fossem daquela forma. Porém, encontrá-los ali, num lugar que, além de tudo, deveria ser escuro e sem alimento era absolutamente chocante. Até porque havia comida. Ela era sugada do solo e era suficiente para sustentar aqueles colossos. E havia luz. As criaturas forneciam sua própria luz ao ambiente.
De início, tudo ali parecia ter o objetivo de desestabilizar os astronautas. Mas os dias se passaram mostrando que a parceria de humanos e seres fúngicos era positiva. As cavernas eram realmente seguras. As camadas de solo protegiam contra as radiações do sol vermelho em torno do qual o planeta orbitava. A intensa vida semeada pelos esporos fornecia comida, luz e níveis crescentes de oxigênio. Durante os trabalhos para descobrir mais daquele novo universo, foi possível progressivamente deixar de lado os capacetes e até as pesadas roupas de proteção.
Contudo, uma parceria requer contrapartidas.
Então, quando Dira – porque ela fora a primeira a perceber e entender – chamou Liu e explicou, foram precisos vários minutos para que dominasse o pânico.
– Você jogou demais aqueles games antigos, Liu. Por que nossa mente seria submetida pelos fungos, se há muito mais vantagens para eles se trabalharem junto conosco? A partir de agora estamos em rede. Você, eu, nós. Partes integradas. Podemos conversar, trocar, separar quando preciso. Os micélios fazem parte de nós como fazemos partes deles. Fomos incluídos ao chegarmos aqui. Veja – ela elevou a mão e mostrou os dedos, onde uma rede fina, e suave como um tecido translúcido os cobria –, nas pontas dos dedos está o acesso a todas as informações e uma ligação imediata com tudo, com todos e com cada um. Não é lindo?
– Eu não teria dúvida alguma, se fosse possível abrir mão dessa simbiose, Dira. Se eu pudesse escolher estar ou não nessa parceria.
– Você escolhe ter ou não as bactérias do seu corpo? − Os ombros de Liu desabaram. Dira sorriu. – Está querendo negociar com a Evolução, como se pudesse estar fora dela. É algo bem humano, na verdade. Mas nós dois sabemos que é inútil.
QUEM É NIKELEN WITTER
Nikelen Witter é escritora, professora universitária, pesquisadora e ativista. Está vinculada ao Departamento de História da UFSM, onde pesquisa Gênero, História das Mulheres e da Leitura. Em 2020, foi homenageada como Patronesse da Feira do Livro de Santa Maria, a segunda feira literária mais antiga da América Latina. Desde 2016, Nikelen Witter é agenciada pela Increasy Consultoria Literária.
