Nesses últimos 10 anos, os estudos sobre os sonhos em diferentes universos de pesquisa proporcionaram aos transaberes diversos avanços sobre a compreensão do onírico.
Eu me formei em psicologia, cujo contato com a Dra. Nise da Silveira me fez ser estagiário e, em seguida, coordenador cultural da Casa das Palmeiras, em que as relações peculiares de Nise ao longo da Psicologia Analítica, a filosofia de Spinoza e afins, me fizeram adentrar nos estados extremos dos clientes que possuíam singularidade psíquica, incluindo, claro, seus sonhos.
“há muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora”– Ana Martins Marques
Em meu trabalho de consultório e de acompanhamento terapêutico – que consiste em acompanhar os clientes que mais se beneficiariam com essa modalidade clínica para rua, fora do consultório -, já muito influenciado pela esquizoanálise de Deleuze e Guattari, ou seja, pelas mais belas ressonâncias da clínica com a filosofia, me interessei pelo encontro entre diferentes áreas do saber no estudo dos sonhos.
Um exemplo de como a experiência era intensa na Casa das Palmeiras era o dia do teatro, em que o cliente (como Dra. Nise chamava os pacientes) era o diretor da peça e nós, os atores. Era um modo peculiar de densificar estados psíquicos singulares, de modo que ficávamos mais íntimos das questões que os atravessavam e, simultaneamente, ressoavam em nós tais questões, o que tornava mais rico nosso próprio processo terapêutico.
Juntamos a filosofia da diferença, ciência, espiritualidade e a arte pensar o estatuto de realidade dos sonhos e criamos os transaberes. Nossa concepção de sonho é que ele é real, mas sutil e que ele deveria servir menos como algo a ser interpretado e mais como uma instância de cultivo de devires na vigília, trazendo novos possíveis.
A questão seria mais como nós nos relacionamos com as vibrações mais sutis, que são mais difíceis de apreender, dada a insensibilidade secular e racional a elas: se essa relação se dá em um contexto artístico, ela é chamada de inspiração, se surge em um contexto acadêmico, é chamada de insight, se ocorre em um contexto espiritual, é chamada de mediunidade e se emerge durante o sono é chamada de sonho.
O coração do nosso trabalho é lidar com as vibrações mais sutis com o máximo de precisão possível, prescindindo até da linguagem, se for o caso. Para tanto, desenvolver uma meditação transaberes é da máxima importância: tarefa que chamamos de exercício em vórtex.
Na assimilação onírica, a ideia é apreender as imagens oníricas como uma extensão da vigília, sempre partindo da questão “como seria esse sonho acontecendo aqui e agora?” e desdobrando suas ressonâncias. Tal prática se desenvolve em meus cursos e eventuais atendimentos com resultados muito significantes.
Sendo assim, nosso trabalho é evitar que a apreensão das vibrações mais sutis perca sua precisão ao ser alocada no campo específico de uma disciplina, seja ela a ciência, a arte, a psicologia ou mesmo a espiritualidade e seja restringida ao sistema de crença de cada uma delas.
Atualmente, os estudos transdisciplinares sobre os sonhos movem diversos pesquisadores e autores. Por exemplo, os estudos do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro vêm atraindo muita atenção, sobretudo pela abrangência de seus temas. Ele trabalha com psicanálise, filosofia enteógenos e afins. Se, de um lado, os estudos científicos relacionados à psicodelia ganham força, por outro, parece que a ciência legitima o uso de psicotrópicos como uma espécie de concessão da razão para descansar brevemente de si própria, posto que o junky foi praticamente expulso pelo avanço do capitalismo não só da academia, mas até mesmo das artes.
No entanto, cabe aqui o contrapeso do livro Somos nosso cérebro? de Vidal e Ortega que revela a redundância de grande parte das pesquisas em neurociências ao afirmar que estas não sobrevivem a um simples “e daí?”.
A filosofia da diferença ganharia um desdobramento com a antropologia de Tim Ingold. O antropólogo propõe, entre muitas outras brilhantes ideias, substituir o entre de Deleuze & Guattari pelo ao longo de na itinerância. Com isso, ganhamos mais inclusão e mais intimidade com o que os filósofos chamam de imanência, ou seja, uma filosofia do aqui e agora, sem dualismo e nenhuma transcendência: sem intangíveis, eternidade e imutabilidades.
Ingold ainda propõe se inspirar mais no micélio fúngico que no rizoma da botânica, para pensar o conceito filosófico do rizoma de Deleuze & Guattari – que propõe uma plasticidade intensa, uma espécie de modelo instável que foge aos modelos tradicionais – no sentido que na botânica, o rizoma seria uma espécie de clonagem, muito suscetível, por exemplo, aos ataques de uma praga, ao passo que nos fungos essa plasticidade ocorre de fato com muita desenvoltura.
Dois livros lançados no mesmo ano da minha defesa trariam muita consistência para o percurso a seguir: os estudos sobre esoterismo na academia ganhariam uma metodologia inédita com Esoterism and the Academy do historiador Wouter Hanegraaff, e nas confluências ao longo da filosofia da diferença e hermetismo, seria publicado o livro Hermetic Deleuze do filósofo Joshua Ramey, ambos reforçando e desdobrando nossas propostas do Ontologia Onírica.
Em relação à mecânica quântica, um estudo que já apontávamos brevemente no Ontologia Onírica ganharia uma maior atenção nossa: a Interpretação Transacional de John Cramer e seu desdobramento com Milo Wolff. A partir dela, a afirmação esotérica “tudo é vibração” ganharia um estatuto científico mais robusto com sua proposta instigante que a partícula elementar, na mecânica quântica, seria, na verdade, uma onda esférica estacionária, ou seja, tudo é onda, de modo que a partícula é uma onda parada e que vibra menos. O que ocorre é que nossos sentidos e aparelhos de medidas apreendem tal onda de modo reducionista, ou seja, enquanto “partícula”.
Já o uso do termo, oriundo da mecânica ondulatória, a ressonância, na pesquisa transdisciplinar, popularizado pelo filósofo Gilbert Simondon, tão caro para nossa pesquisa, ganha tratamento sociológico com Harmut Rosa com seu livro Ressonance, ao afirmar que a resposta para uma sociedade cada vez mais ansiosa dada à velocidade dos acontecimentos, seria justamente a ressonância ou a capacidade de vibrar com o outro, no lugar da lentidão. Os estudos transdisciplinares do músico experimental Tato Taborda, que com seu livro Ressonâncias, utiliza Rosa e amplia seu alcance.
Insisto aqui em detalhes para demonstrar a transdisciplinaridade possível para o campo dos estudos oníricos: a ousadia do departamento me permitiu uma banca desse tal nível de heterogeneidade que levou a uma discussão tão acalorada e rica. Tão rica, que reuniu o saudoso físico Luiz Pinguelli Rosa, o cosmólogo Mario Novello, o filósofo Auterives Maciel, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o matemático Ricardo Kubrusly e a neurobióloga Maira Froes.
Este ano completam-se 10 anos do lançamento do meu livro Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica. O que eram confluências entre os saberes se tornou um trampolim para a criação de novos conceitos e um novo modo de apreender a vida, uma dança que continua aqui e agora, rumo a algo que, por enquanto, as palavras são insuficientes.
“O coração do nosso trabalho é lidar com
as vibrações mais sutis com o máximo de precisão possível, prescindindo até da linguagem, se for o caso.”
QUEM É NELSON JOB?
Criador do campo experimental e conceitual transaberes, palestrante, psicólogo, doutor pelo HCTE/UFRJ, co-editor da revista “Cosmos e Contexto” e autor dos livros “Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica”, “Vórtex: modulações na Unidade Dinâmica” e do romance “Druam”.
FIQUE POR DENTRO
DRª NISE DA SILVEIRA
Foi uma médica psiquiatra brasileira reconhecida mundialmente. Foi pioneira no Brasil, tanto em utilizar a arte como recurso terapêutico, como na pesquisa das relações afetivas entre pacientes e animais (aos quais chamava de co-terapeutas).
Ela rejeitava a palavra “paciente” em relação aos internos dos hospitais psiquiátricos e determinava o uso de “clientes” para reforçar a relação de troca, mas preferia sempre se referir a eles pelos nomes. Nise chegou a se encontrar pessoalmente com Jung, que se encantou com as mandalas produzidas pelos clientes dela.
Em 1952 fundou o Museu Imagens do Inconsciente, com obras de seus pacientes e em 1956, criou a pioneira clínica psiquiátrica de regime aberto, conhecida como a Casa das Palmeiras, para atuar como intermediária entre a rotina do sistema hospitalar e a vida na sociedade.
FILOSOFIA DA DIFERENÇA
A Filosofia da Diferença foi sistematizada pelo filósofo francês Gilles Deleuze, em seu livro “Diferença e repetição”, de 1968. Deleuze relaciona filósofos de diferentes correntes filosóficas – como os estoicos, Spinoza, Nietzsche e Henri Bergson -, para pensar a “diferença pura”; de um modo muito original, relacionado a filosofia com a ciência, as artes, gerando grande repercussão e influência, chegando a criar com o clínico Félix Guattari uma crítica contundente à psicanálise, sobretudo com proposta de esquizoanálise, no primeiro livro da dupla, “O anti-Édipo”.
RIZOMA
O rizoma é um termo botânico que sugere uma forma de organização que não parte da raiz de forma centralizada. Na teoria filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari, esse conceito expressa um modo de pensamento auto-organizado, múltiplo, não-metafórico em que o fluxo é mais relevante. Tim Ingold vai além e diz que a “malha” de fungos tem caracteristicas melhores para o conceito filosófico de rizoma, pois o “micélio fúngico” não possui centro.