Sem o movimento não haveria maré, nem o testemunho dos olhos, nem o sibilar da pinha atravessada pelo vento. Nosso pensamento move-se assombrosamente. A terra, na altura da linha do equador, gira a 1.700 km/h em torno de seu próprio eixo. Desde muito antes dos aviões e navios a motor, a toada de movimentação de humanos e animais em cima da terra colaborou para a gestação de imensos jardins e biomas como o cerrado, a amazônia e as florestas tropicais. O movimento intenso nunca nos foi estranho. Ele sempre carregou de um lado para outro universos de memória e bio miscigenação, universos etnosféricos de transfusão de subjetividades e universos metafísicos de investigação de aléns e mundos outros a descobrir.
Somos movimento nomádico, os seres são nômades, carregando consigo universos. Cada um universo, nessa multitude de existências, tem o aspecto geral da espécie a qual pertence e aspectos de individualidade, pois cada ser manifesta a si próprio. Viver sempre exige que os seres venham e sejam, que se movam. As espécies que se adaptam e vivem, exigem que seus seres venham e sejam, atuem, manifestem suas particularidades. São universos próprios dentro do grande universo daquela espécie. Os seres, ao se mover, sentem e se ressentem. Cada um deles, em sua pequena particularidade, por mais ínfima que seja, sente.
Mas nessa multiplicação infinita de universos, temos de distinguir, não sem um pesar, o ser pessoa, dos seres outros. Há até pouco tempo nós humanos chamávamos os animais também de pessoas. Existem vestígios disso em povos da Tundra russa, em povos amazônicos, em tradições orais da África ocidental. Mantínhamos relação com os seres a partir da ideia profunda de que todos são consciências. Mas nesse gradual distanciamento e distinção do movimento humano em relação ao movimento dos demais seres, de nossa forma de nomadismo para com a forma de nomadismo das demais espécies, nos resvalamos num abismo perigoso.
O movimento humano, em boa parte, tem deixado de ser um nomadismo na paisagem para se tornar uma errância na extensão virtual. O movimento deixou de ser rítmico, de acordo com as pulsações do espaço natural e suas marés e estações, para ser uma contínua correnteza irrefreável. Os demais seres ainda lutam e se adaptam na paisagem para viver uma vida “ritual”, dentro de pulsos biológicos do planeta, como “carne na carne do mundo” (Merleau-Ponty). Mas nós já não queremos fazer “casa no tempo”, para usar uma expressão de Byung-Chul Han. Já não consideramos as rítmicas rituais um amparo de adaptação e sustentação perante as condições inóspitas da existência. O ritual é uma forma de construir morada no tempo, segundo Byung-Chul Han.
Saltamos vertiginosamente do ambiente terreno onde vivem todos os seres, para o ambiente virtual que não tem estações, não tem pulsações, é uma corredeira sem tréguas, arrastando o que há pela frente. Nos viciamos em doses altíssimas de velocidade, para muito além dos modestos 1.700km por hora da terra. A terra nesses bilhões de anos veio se desacelerando, auxiliada pelas frenagens dos oceanos. Só assim estabilizou a dosagem de sol e noite sobre suas faces. Os dias ficaram iguais às noites. A partir daí a luz do sol pode fazer seu trabalho: eclodir vida no planeta.
Nós, ao contrário, estamos acelerando nesse ambiente extra planetário que é o virtual. Estamos aumentando as noites, vivendo noites frias, desérticas e sem sonho, ao mesmo tempo que diminuímos a incidência de sol. Minguando vida. Sem equilíbrio gerador, nos exaurindo, ficando estéreis, sem tréguas, sem pouso, sem parada, sem morada, sem modos de criar significância, desatentos. Universos em movimento de colisão, que não se querem frenados, rítmicos, pausados.
Os nômades nunca tiveram moradias definitivas no espaço da paisagem, sempre construíram chosas temporárias, mas que eram pousos, paradas fartas de significados. Por onde passavam criavam sentido, ritualizavam seus assentamentos, significavam o lugar com suas festas, colhiam as matérias primas para suas artes fiadas com a memória daquele lugar. Tinham pequenas choças no espaço, mas verdadeiros palácios, templos, mansardas, foyers, varandas e catedrais erigidas firmemente no tempo. Eram refinados arquitetos de sentidos. Meditadores de universos.
Hoje estamos desterrados do espaço, pois nossas casas viraram apenas dormitórios onde se dorme mal. Hoje somos degredados do tempo, pois não sabemos mais como morar nos significados. É necessário que saibamos nos recolher do virtual espaço extraterrestre. Fundamental que saibamos voltar para o espaço terreno do tempo. Na vida terrena o tempo deseja ser desenhado, materializado, construído na paisagem, na amizade, no labor corporal, no carinho das mãos, nas formas rituais de fazer as coisas. Na vida terrena a terra gosta de ser cuidada.
Somos terráqueos, pelo menos por enquanto. Então necessitamos dar às nossas filhas, aos nossos filhos, uma experiência material, matricial, materna, corporal, naturante, encaixada na paisagem, interessada nela, comprometida com ela, atenta aos seus pulsos. As crianças têm sofrido brutalmente na vertigem da correnteza. Seus pousos são escassos e já não tem símbolos. Suas funções simbólicas estão sendo colonizadas pela pauperização icônica (sinal meramente informativo, sem significância). As famílias, atoladas, engajadas em militâncias desde as mais milenaristas, malucas e fanáticas às mais democráticas e bem intencionadas, descem, desabaladas de tudo, pela correnteza abaixo. Desbragadas pelo arrastão, notoriamente adormecidas, não se dão conta de que as crianças, as criaturas em seus começos, almejam, não as demandas da urgência inventada, mas estados de tempo, pousos bem aninhados, calma para os ouvidos sonarem o mundo, respiração para a alma contactar seu universo.
Nossas crianças são filhas dessa nossa época, e sentem as contingências, muitas vezes violentas do que nela ocorre, e levarão consigo, na sua constituição, os traços desses acontecimentos. Mas temos o dever incontornável de garantir a elas algo anterior às lutas do tempo social capturado; temos o dever de fazer do tempo uma morada cheia de sentidos, de milagres, de encantamentos, de confiança.
Temos o dever, para com as novas gerações, de trazer para o tempo, como diria Nietzsche, a sua função redentora: o extemporâneo. Só assim saberemos arquitetar nosso tempo. Assim voltaremos à terra. Assim conheceremos os multiversos. É na lavoura da vida simbólica e nas pedagogias do aninhamento e do enraizamento, que nasce o sentimento seguro de que a vida é também uma bahia, um continente, uma enseada.
QUEM É GANDHI PIORSKI
Gandhy Piorski é curador, consultor, artista plástico e teólogo. Mestre em Ciências da Religião, é pesquisador nas áreas de cultura e produção simbólica, antropologia do imaginário e filosofias da imaginação. No campo das visualidades, discute as narrativas da infância e seus artefatos, brinquedos e linguagens, a partir dos quais realiza exposições e intervenções.