Em algum nível, nós, humanos, sempre estamos à procura de explicações para a vida. Adoramos novidades. Entender mais e mais sobre o mundo e sobre nós mesmos é o que nos move. Quando esse caminho de descobertas é feito por meio da ciência, as possibilidades são muitas, e todas absolutamente fascinantes.
Na década de 70, o desafio da complexidade, inaugurado na filosofia da ciência por Edgar Morin, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, surge como uma estratégia para um pensamento com abordagens transdisciplinares, mas, também, reconhecendo as especificidades das partes. Ou seja, um pensamento que não reduz, uma interpretação da realidade mais contextualizada, reflexiva, que inclusive traz um novo jeito de ver que o sujeito e o mundo não são indissociáveis. Da mesma forma, Morin também diz em sua frase tão conhecida: “A ciência é igualmente complexa porque é inseparável de seu contexto histórico e social”. Ela é feita por pessoas e em comunidades onde ocorrem contextos políticos, econômicos, antropológicos, ambientais, entre outros. E, por isso, requer que tenhamos referências múltiplas, um pensamento culturalmente diverso e inspirador.
Bom, foi a partir desta perspectiva que eu conheci, há muitos anos, algumas ideias do extraordinário legado do Humberto Maturana. Sem dúvida, meu olhar sobre a biologia nunca mais foi o mesmo. Suas contribuições sobre a compreensão dos seres vivos e os fundamentos biológicos do conhecimento são, e serão ainda, renovadores, atuais e necessários para as ciências sociais.
Humberto Maturana, em parceria com Francisco Varela, criou a teoria da autopoiese e a biologia do conhecer. Não por acaso ele introduz uma harmonia incomum entre conceitos da biologia e outras áreas do conhecimento, pois foi também um dos idealizadores do pensamento sistêmico e se alinhava, como disse Varela, à ideia do ser humano “não como um agente que ‘descobre’ o mundo, mas que o constitui”.
A palavra autopoiese surgiu pela primeira vez na literatura internacional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe, para definir os seres vivos. Em termos simples, um sistema autopoiético produz continuamente a si mesmo. Se comparado a máquinas, são as únicas que produzem a si próprias, todas as outras produzem sempre algo diferente de si mesmas. Ainda, em outras palavras: É a criação de si.
Os organismos vivos são sistemas autônomos que se autoproduzem e se autorregulam. Mas são também dependentes dos recursos disponíveis. Estão determinados por sua estrutura e, para manter sua organização, vão estabelecendo interações com o meio para assegurar sua autopoiese e, assim, coexistimos nessa imensa comunidade de biodiversidade na qual estamos inseridos.
Em relação aos seres humanos, Maturana sustenta que a origem do humano está no surgimento da linguagem e no seu entrelaçamento com a emoção, a qual constitui a base das ações humanas. Só para terminar este pequeníssimo resumo sobre a biologia do conhecimento, Maturana também sustenta que, do ponto de vista biológico, a aceitação do outro é o que dá origem ao social como acontece em qualquer comunidade de seres vivos e, dessa forma, nossa origem antropológica não se deu através da competição, mas sim através da cooperação. Ainda vai mais longe quando diz que “o amor é a emoção central na história evolutiva humana desde o início”, sendo aqui a palavra amor associada à noção de cuidado mútuo.
Considerando o ser humano um sistema autopoiético, podemos observar aqui dois argumentos que contrapõem o dito tradicional: O primeiro é que a interferência do meio define o processo de aprendizado. Ora, se o ser, em sua autopoiese, é quem se constrói e se modifica, o meio interfere e interage mas não define. É ele, então, que sofre o processo de aprendizado e que produz o conhecimento. Segundo, se é a emoção que nos faz humanos e que valida, por meio da linguagem, os critérios do processo do conhecer, o senso comum entende a razão e a objetividade como central nas nossas ações, ideia esta que constitui a base do desenvolvimento da sociedade moderna (!?). São reflexões sobre biologia e cultura que se “encontram” por uma condição inerente à natureza dos seres vivos e, no caminho do tempo histórico da humanidade, estão dissociadas, contrariando os princípios constituintes da vida. A boa notícia é que, contrapondo as possíveis distopias, ainda podemos observar na ideia central do nosso autor que os acontecimentos do mundo que nos cerca não são anteriores à nossa experiência, pois nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento do mundo, sabendo que esse também constrói seu conhecimento a nosso respeito e, nesse processo, ambos passamos por modificações e essas vão alterando por completo nossa condição existencial.
As ideias de Maturana são consideradas revolucionárias em torno da biologia do conhecimento, com profundas implicações para a nossa compreensão do surgimento da vida, da consciência e do surgimento da cultura inseparável da natureza biológica dos seres humanos. Na biologia, explica a vida e o devir dos seres vivos no domínio de sua existência. Na epistemologia, reflete sobre o processo do conhecer e, na linguagem, sobre as relações humanas em geral.
Chileno, Maturana faleceu em 2021, aos 92 anos. É absolutamente fundamental ter suas teorias científicas como exemplo de contribuição da ciência feita nos territórios periféricos e incorporadas no desenvolvimento do conhecimento global. Seu livro “A Árvore do Conhecimento” é considerado uma das obras mais importantes do século XX, justamente por apresentar as bases biológicas da compreensão humana. “Ele é apenas um rapaz, latino-americano…”. Viva Humberto Maturana.