Poderia o céu da noite ter sido varrido? As estrelas não estavam. Era só noite e o calor era um manto que abafava a comunidade e fazia Janna duvidar do menos pior, sair para sentar na calçada ou brigar por moedas para mais um sacolé.
Ela sabia que não poderia comprar, e ficar na rua também não parecia tão legal, só tinha os menores. Qual era o sentido disso? Janna pensou antes de subir na laje de sua vizinha, colada no teto da casa de sua família. Ficou estirada lá, buscava silêncio e menos calor, parecia ter encontrado só um pouquinho das duas coisas.
Janna estava no celular quando ouviu o que parecia ser vento, mas não o sentiu. E então aconteceu de novo, ela se arrepiou e do mais absoluto nada deu um chute no ar e ouviu um barulho que não fazia sentido, um uivo de dor como se tivesse acertado alguém e pá, seja quem for caiu no chão gemendo. Parecia um menino e, na verdade, era um adolescente. Ela tinha chutado o coitado bem lá.
“Precisava fazer isso sua garota louca! ”, disse o garoto que não recebeu resposta porque Janna não podia vê-lo. Só ouvia sua voz e, antes que pudesse correr, ele agarrou seu braço. Ela paralisou sem acreditar no que estava acontecendo e, vendo um garoto negro que parecia com qualquer um de sua escola, cabelo “nevado” curtinho e um moletom e calça que, como dizer, refletiam a noite, ela, tudo ao redor. Aquilo chamou mais a atenção de Janna que o garoto com cara de comum a segurando – muito incrível – e quando pensou em tocar, ouviu o alerta na mesma hora. “Vai cair dentro da noite e nunca mais sair”. Isso assustou Janna e, então, ele riu, tirou o capuz da cabeça e disse que era “brincadeira”. Só estava zoando com ela, mas agora que tinha certeza de que ela o via claramente, sem gritar, poderia descansar ali.
Janna pediu para que largasse o seu braço e ficou olhando sem entender. Não fazia sentido, mas ainda assim o garoto estava diante dela e não a assustava de modo algum.
“Que tipo de, eu não sei, é você? ”, perguntou curiosa e com certa cautela.
“Tá doida, garota! Eu sou como você, mas tô de castigo”, respondeu, deixando Janna sem entender nada. Mas “como assim como eu? Um garoto normal? Não parecia.
“Fui pego pela minha língua. Desafiei o vento da área e foi que nem no ditado da minha vó, o que diz cuidado que pode ter alma, alguém ouvindo e vem responder? Pois é, o aspirante do CVU – Controle de Ventos Urbanos – ouviu e se doeu. E agora estou nessa roubada de – saber como é – entendeu? ”, disse ele gesticulando.
Janna parecia séria, mas explodiu numa gargalhada de fazer chorar. Quer dizer que “um ventou ouviu”, ficou “bolado” e resolveu dar a ele uma lição? Sim. Foi exatamente o que ouviu. Mas o garoto não estava rindo, ela percebeu e se controlou. Foi quando a ficha caiu e ela pediu para ele esclarecer o “castigo”.
O rapazinho ficou zangado e chegou bem perto de seu rosto para responder.
“Ele me fez responsável por ser vento esta noite na sua comunidade. Para eu ver como é bom tentar amenizar o calor dentre tan-tas paredes quentes e vielas. Eu tenho que refrescar essa área até o amanhecer. Entendeu?”. O menino segurava o moletom e Janna entendeu: a roupa “de vento” tinha o poder de fazer isso, não ele.
“Posso fazer isso um pouco também? Vai, deixa…”, disse Janna animada.
O menino não entendeu, mas ela pediu para ele esperar, voltou com suco, pão de carne moída, bala de caramelo. E enquanto ele comia, ela vestiu o moletom e foi andar pelas vielas de seu bairro. Mas, a sensação de liberdade era tão incomum que ela dançava e quase tocava o rosto das pessoas, aliviadas com a brisa que finalmente parecia ter encontrado seus endereços. Aquilo era mágico demais.
E foi quando Janna decidiu que ia perseguir a próxima brisa e cutucá-la para se tornar uma aspirante do CVU também. Ela queria ser vento.
QUEM É LU AIN-ZAILA
É pedagoga (UERJ). Escritora afrofuturista e publicou: Duologia Brasil 2408, composta por (In)Verdades e (R)Evolução em 2026-2027, Sankofia em 2018 e, Ìségún em 2019 .
Ensaista e pesquisadora em construção, escrevendo sobre afrofuturos entre temporalidades afrobrasileiras e africanas.