Aya acordou quando a última estrela ainda guardava o rastro da noite em um céu azul-dourado alumiando, pelas frestas da floresta, os primeiros raios de sol. Lembrou de seu sonho, ainda na madrugada: uma mulher negra colhia flores de múltiplas cores sobre um chão batido de terra, as colocava no torço branco enlaçado em sua cabeça e, sorrindo, dançava em meio ao som de muitos tambores.
Era a festa de seu povo, uma saudação a Oxum, a deusa do encantamento e da diversidade de toda beleza. Todos no terreiro entoavam cantos e rezos em uníssono, quando, repentinamente, um estrondo atravessou o salão e nos segundos do disparo de uma arma, a gira inteira parou ao ver aquela mulher tombar sobre o chão.
Mesmo que, naquele instante, a angústia lhe tomasse o peito, a menina levantou da cama e prosseguiu em silêncio para cumprir os ritos matinais que eram de costume em sua comunidade. Para o povo de seu território ancestral, o ato de sonhar não é algo distante e intangível, ao contrário, o sonho revela acontecimentos profundos da realidade. Por isso, ao acordar, mesmo que de um pesadelo, era preciso agradecer e sentir a mensagem trazida, e mais, era preciso ritualizar o dia para conseguir enxergar além. Assim o fez: o primeiro gesto sagrado que deveria ser feito para despertar era mergulhar no furo do rio Tupinambá.
Caminhou mata adentro para alcançar as casas de palafitas sobre as águas barrentas, onde morava o seu avô Tião. Como de praxe, o velho já estava à sua espera, imerso no rio: sua pele parecia se confundir com a cor própria daquelas águas. Aya, vagarosamente, se aproximou, pediu a licença para chegar e a benção para falar. Com um engasgo no peito, no desaguar de uma lágrima, contou o sonho ao seu mais velho. Naquele momento, parecia que todo o rio se movia junto à lágrima e o corpo da menina avançava junto à correnteza. Mergulhou. Quando retornou à superfície, seu avô lhe recebeu em um abraço e capturando-lhe os olhos, disse:
– O nosso povo é antigo, canta e resiste há muitas mortes, renasce há muitas vidas. Desde há muito, lutamos pelo o nosso direito de ser e existir como somos.
Mundiada pela maré, a garota sentia que, assim como no sonho, seu corpo se embalava no colo de mamãe Oxum:
– Vô, aquela mulher dança dentro de mim. Aquela mulher é meu corpo-território. Por que arrancaram sua vida?
Por debaixo do rio é fundo porque ele renasce desde dentro. Quando criança, era o que Aya escutava de seu avô, ao acompanhá-lo nas pescas da antemanhã. Era o tempo em que Tião lhe contava as histórias de um povo que habitava o reino das águas. É um povo encantado, dizia ele. São seres invisíveis que guardam o mistério do fundo. Com o avanço dos cascos de ferro e das máquinas que barram as águas que correm , esse povo vem sendo cada vez mais extinto. Assim como ceifam o leito de um rio e a vida daqueles que nele moram, também o fazem impiedosamente com as negras nascentes fêmeas que cantam e dançam à Mãe d’Água.
– Talvez não haja resposta para tanta morte, minha neta. – respondeu o velho, encontrando com delicadeza as mãos de Aya e conduzindo-a à terra, prosseguiu: – O que eu posso dizer é sobre o que me indaga a vida: como continuas a mover o rio que corre e continua a existir dentro de ti?
O corpo franzino e molhado da menina foi tomado pela pergunta do ancião e, nesse instante, era como se todos os seus poros, vértebras e entranhas se espreguiçassem junto ao sol que se abrasava cada vez mais sobre o espelho d’água. Aya entremeou nos lábios um leve sorriso e, como se ouvisse a mesma cantiga do sonho se agigantar sobre o córrego, solfejou:
– Continuarei dançando!
Rodamoinho, peito largo, coração aberto feito braço de rio ao encontro da foz: a menina agora crescia ao confluir o corpo em dança com suas raízes diversas em seus troncos: múltiplas mulheres lhe transpassavam; ser água era sua própria forma de dançar e jorrar no contrafluxo da morte e do apagamento. Vozes ancestrais da terra preta que lhe ancoravam em seu lugar: a herança de seu povo era memória e força de pertencer.
– Re-existirei! – bradou agora a menina-mulher –, para que a dança de minhas antigas e antigos continuem a correr naquelas e naqueles que virão para habitar esse mundo, tal como um rio: negro, vivo e livre.
QUEM É MAYARA LA-ROCQUE
Graduada em letras com habilitação em língua francesa pela Universidade Federal do Pará, escritora, educadora e artista. Autora do livro artesanal Atravessa a tua viagem (2016) e do livro Uma luminária pensa no céu (Edições do Escriba, 2017), tem publicações em diversas antologias e trabalhos independentes na área da poética, artes plásticas, performance e audiovisual. É mediadora do curso Escritas de si e de outros laboratórios voltados para criação com a palavra.