”Cante-me uma canção
para um fim de mundo
e logo um novo mundo começará”.
Diante do céu imenso de estrelas, a ponte aeroespacial, as rochas sombrias e brilhantes, na fusão de tudo quanto é luz e treva, na pista vazia em direção ao universo, ali estava o pequeno robô a tremelicar. O último turno havia sido particularmente pesado, com ordens que contrariavam os estatutos legais daquela intrincada federação de asteroides, irregularidades que faziam seus chefes apagarem todos os dados comprometedores de seus circuitos.
O robozinho estacionou no final da pista de pouso. Começou a reiniciar seus sistemas e diretórios confusos, paralisando-se até conseguir voltar ao trabalho — em geral, durante aquele período de processamento, outros robôs e funcionários deixavam-no em paz por algumas horas. Apegar-se àquela melodia antiga fazia o robô continuar funcionando. “Cante-me uma canção para um fim de mundo e logo um novo mundo começará”.
Uma estrela cadente cruzou o céu sobre a pista. Tão rápida, que o robô acionou sua visão para admirá-la lentamente. A estrela voltou a riscar o céu flutuando, agora na repetição do vídeo. O robô ficou repassando a imagem milhões de vezes, enquanto em seu cérebro positrônico pulsava: “Cante-me uma canção para um fim de mundo e logo um novo mundo começará”. Aos poucos, começou a imaginar uma mulher, cuja filha estava ausente. Ou talvez seria ela uma filha ausente de mãe. Não fazia muito bem a robôs sonharem nada, então, logo o robô era a própria mulher. Tão brava, tão cheia de coisas no peito, organizando as companheiras em manifestações, dentro de naves com a carenagem marcada com palavras de luta. A mulher, que também era o robô, logo se esquecia sobre quais palavras eram aquelas, palavras por quem dera a vida, agora tão complicadas de se recordar. Em algum momento, a mulher, que era também o robô, foi pega. Injetaram-lhe coisas. Soros de verdade e soros de esquecimento. Desfizeram-lhe o estômago em vômito e a voz em ácido gástrico.
Prenderam-na numa cela, somente com um respiradouro de rosto. No cubículo, havia uma janela minúscula, bem no alto, com o céu sempre escuro de algum lugar esquecido na galáxia. Ela gritou e o espaço estrelado absorveu os gritos na escuridão perpétua. Despejaram comida e tubo de oxigênio várias vezes. Em algum momento, colocaram uma cobra de Órion na cela. Ela não tinha medo de cobras e preferia que fossem as duas juntas, uma fazia companhia a outra. Ou que a peçonhenta a picasse logo, assim seria levada para junto de sua filha que um dia se fora. Que filha?
Os dias passaram-se naquela cela. Todos escuros e indistintos. Comida e tubos de oxigênio. Ou seria o robô, na pista de pouso, sonhando que era uma mulher? Girariam aquelas estrelas também? Olhe, uma estrela cadente, vibrou entre as paredes. A mulher, então, recordou de um poema antigo: “cante-me uma canção para um fim de mundo e logo um novo mundo começará”. Murmurando baixinho aquilo, metade para si, metade para a cobra de Órion, que deveria estar tão assustada quanto ela naquele cubículo. Um pirilampo apareceu entre as frestas da cela. Haveria pirilampos naquele lugar no espaço?
O pirilampo entra em um edifício por uma fresta. Descobre, numa cela, uma mulher de olhos imensos, paralisada por algum veneno, a tremelicar. O vaga-lume sonha, então, que era um robô sonhando ser aquela mulher encarcerada com uma cobra. Flutua como uma estrela cadente, recordando-se de seus vários nomes pelas galáxias — lumeeiro, lampíride, caga-fogo, noctiluz. Na lentidão de quem carrega a própria estrela na cauda, vai e volta, como um vídeo em repetição, divagando: seria eu, um robô que sonha ser uma mulher encarcerada ou sou eu, um pirilampo, a levar a felicidade das estrelas cadentes ao coração dos vivos? Na dúvida, relampeia uma cantiga antiga: “Cante-me uma canção para um fim de mundo e logo um novo mundo começará”.