Duas tradições complementares e inconciliáveis disputam historicamente a noção de sujeito. Para a primeira, representada por Aristóteles e Hume, sujeito é uma condição dada e universal; somos sujeitos na medida que falamos, pensamos e agimos de acordo com a razão, mas também porque permanecemos os mesmos, ao longo das transformações que a vida nos impõe como indivíduos. Temos aqui essa hipótese de uma substância que persiste na sua essência ainda que a pessoas reais que habitam esse sujeito possam falar línguas diferentes, seguir hábitos distintos e pensar heterogeneamente ao longo da vida.
Para a segunda tradição, a pergunta não é como as pessoas se especificam a partir do gênero universal de sujeito ao qual elas pertencem, mas como as pessoas precisam se transformar para se tornarem efetivamente sujeitos, ou seja, sob quais condições de método no uso da razão, de compromisso cidadão com a lei, ou de obediência moral a normas nós, pessoas em geral, nos tornamos efetivamente sujeitos.
Essa é a tradição de Descartes e Kant. Este último abordava o problema da transformação em sujeito, usando a noção de emancipação, definida pelo uso da razão em estado de maioridade, ou seja, crianças, criminosos, loucos e outras tantas condições, sociologicamente ocasionais da “pessoa”, especificadas por cada cultura, não estariam incluídas diretamente nesta noção de sujeito.
A psicanálise teria nascido como uma espécie de tentativa de superação dessas duas concepções de sujeito. Ela mostrou que, entre adultos e crianças, povos originários e povos “civilizados”, assim como entre loucura e normalidade não há uma separação clara, mas uma linha de continuidade. De fato, esse gradiente teria nos seus dois polos opostos duas versões de sujeito distintas. Tal era a noção um pouco confusa de Ego (eu) ou de self (si mesmo) que se poderia acrescentar ao domínio antropológico da pessoa e ao campo epistemológico ou científico do sujeito.
Mas a grande novidade trazida por Freud, e depois por Lacan, não consistiu em dar cidadania a um sujeito composto por afetos e sentimentos, como se a máscara da desrazão pudesse conciliar o universalismo aristotélico com o particularismo cartesiano. Pelo contrário, tornou-se cada vez mais claro que o sujeito talvez seja composto por essa divisão entre suas duas formas históricas e que ele se expresse, em forma e estrutura, como uma divisão. Falar em divisão é falar em conflito, e falar em conflito significa que a natureza e a contingência mesma de nossos desejos depende de uma gramática paradoxal ou contraditória. Ali, onde me reconheço como pessoa que sabe quem é, que tem consciência de sua essência, que comanda e gerencia sua rede de identificações, ali estamos alienados na nossa própria pessoa e nos desconhecemos como sujeito de desejo. Inversamente, ali onde reconhecemos nosso desejo, ainda que de modo efêmero e inconstante, ali nós nos apagamos como pessoa e emergimos como um sujeito que pensa, calcula e deseja, sem que a pessoa que a ele se associa, o acompanhe. São os sonhos, os atos falhos, os chistes, os padrões de escolha repetitivamente “equivocadas” que nos habitam como sujeito que existe ali onde não pensa e que pensa ali onde não é.
Reconhecer que nem sempre somos sujeitos, ainda que sempre pessoas, permite reconhecer melhor a disparidade de inclusão nos processos de cidadania e de ampliação da democracia. Permite perceber melhor que a democracia de direito, abstrata e formal pode conviver cinicamente com estados de exclusão, segregação e negação do sujeito. Isso concorda com a etimologia latina do conceito de sujeito, como subjectum, ou seja, não o autor e agente, mas aquele que se submete à lei, aquele que a respeita e se apropria dela. Isso se apoia na posição inversa que afirma que ainda que não sejamos sujeitos, mas apenas e tão somente pessoas e às vezes tratados como quase pessoas, todos nós somos supostos sujeitos e que o sujeito é também uma tarefa, um projeto, um devir. Tarefa necessária para a realização de um mundo capaz de superar a barbarização que tem acompanhado o antropoceno.
QUEM É CHRISTIAN DUNKER
Psicanalista brasileiro, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). É professor titular do do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, onde desenvolve atividades de ensino e pesquisa.
É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano de São Paulo, com ativa participação na disseminação do pensamento de Jacques Lacan no Brasil.
Com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., fundou e coordena o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip-USP).
Em 2012, obteve o Prêmio Jabuti na categoria Psicologia e Psicanálise, por seu livro Estrutura e Constituição da Clinica Psicanalítica. Em 2016, seu livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma foi classificado em segundo lugar, na categoria Psicologia, Psicanálise e Comportamento.
FIQUE POR DENTRO
RENÉ DESCARTES
René Descartes (1596-1650) foi um filósofo, matemático e cientista francês frequentemente considerado como o pai da filosofia moderna. Descartes é famoso pela sua afirmação “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”), que serve de ponto de partida para o seu sistema filosófico. Descartes procurou estabelecer uma base segura para o conhecimento, recorrendo à dúvida e ao ceticismo sistemáticos. Enfatizou o uso da razão e da dedução, e as suas obras deram contributos significativos para a matemática, a metafísica e a epistemologia.
DAVID HUME
David Hume (1711-1776) foi um filósofo escocês conhecido pelo seu empirismo e ceticismo. Examinou criticamente a natureza do conhecimento humano, defendendo que todas as ideias derivam de impressões da experiência sensorial. As obras filosóficas de Hume exploraram temas como a causalidade, a indução e o problema da indução. Também contribuiu significativamente para a filosofia moral, argumentando que os juízos morais se baseiam mais no sentimento e na emoção do que na razão.
IMMANUEL KANT
Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão que desenvolveu um sistema filosófico abrangente conhecido como kantianismo. A filosofia de Kant tinha como objetivo conciliar o racionalismo e o empirismo e forneceu um quadro para a compreensão dos limites e possibilidades do conhecimento humano. Defendeu que o conhecimento é estruturado pelos conceitos e categorias inatos da mente e propôs uma teoria moral baseada no conceito de imperativo categórico, que enfatiza os princípios morais universais e a autonomia do indivíduo.
ARISTÓTELES
Aristóteles (384-322 a.C.) foi um filósofo e cientista grego que contribuiu significativamente para vários domínios, incluindo a lógica, a ética, a política e as ciências naturais. Foi aluno de Platão e tutor de Alexandre, o Grande.
A filosofia de Aristóteles enfatizava o o estudo do mundo natural através da observação e do raciocínio. Desenvolveu um sistema abrangente de lógica e categorizou o conhecimento em diferentes disciplinas. A sua teoria ética centrava-se no conceito de virtude e na procura de uma vida boa através do desenvolvimento do carácter moral.
JACQUES LACAN
Jacques Lacan (1901-1981) foi um psicanalista e filósofo francês associado à escola do pós-estruturalismo. Lacan reinterpretou a psicanálise freudiana, incorporando a lingüística, a filosofia e o estruturalismo em suas teorias.
Ele enfatizou o papel da linguagem e do simbolismo na formação da subjetividade humana e argumentou que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. A obra de Lacan explora conceitos como o estádio do espelho, a ordem simbólica e o imaginário, e teve um impacto significativo em áreas como a psicanálise, a teoria literária e os estudos culturais.
SIGMUND FREUD
Sigmund Freud (1856-1939) foi um neurologista austríaco e o fundador da psicanálise. O trabalho de Freud revolucionou a nossa compreensão da mente humana e das suas motivações. Ele propôs uma teoria da mente inconsciente, argumentando que ela desempenha um papel significativo na formação do comportamento humano. Freud explorou vários conceitos, como o id, o ego e o superego, e desenvolveu técnicas como a associação livre e a análise de sonhos para descobrir conflitos e desejos inconscientes.
O seu trabalho teve uma profunda influência na psicologia, psiquiatria e estudos culturais.