Ao pensar nas proposições para efetivação de uma educação antirracista, somos lembrados da célebre frase “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista” de Angela Davis. A professora, filósofa e grande referência nos estudos e nas lutas do feminismo negro, nos convoca ao movimento. Para sermos antirracistas, precisamos suspender algumas de nossas certezas e reconhecer o racismo nosso de cada dia. Não existe possibilidade de nos movimentarmos em direção às práticas antirracistas se não formos capazes de perceber as violências “sutis” – para quem comente, mas não para quem sente – que realizamos cotidianamente. É essencial aprendermos a nomear o racismo enquanto tal. Silenciar e não nomear o racismo não o fará desaparecer, apenas encobrirá sua desfaçatez.
Ultimamente, muitas escolas têm adotado práticas antirracistas, mas este ainda é um desafio para o nosso país, visto quão estruturante é o racismo em nossa sociedade. Bastam algumas perguntas para pensarmos sobre isso: quais são os lugares ocupados pelos corpos negros na escola? Onde estes corpos estão quando pensamos nos murais, nos livros didáticos e paradidáticos, nos artistas referenciados, nas artes visuais e nas músicas tidas como boas e audíveis no espaço escolar, nas funções de poder e nas funções do terceiro setor? Quais são as figuras representadas com referências potentes e positivas para as crianças? Para além das visualidades, daquilo que é evidenciado de forma imediata a todos e todas, pensemos também nas relações, nas avaliações, nas participações e nos protagonismos das crianças em ações cotidianas. Qual é o perfil das crianças mais reprovadas ou que evadem as escolas? Quem são as crianças que recebem mais acolhimento, que são vistas como bonitas e merecedoras de carinho e aconchego? Quais são as condições estruturais das escolas direcionadas ao público negro e periférico em contrapartida das escolas que podem ser pagas por uma determinada parcela da sociedade brasileira?
Os espaços escolares estão abertos a todas as crianças do país e, como espaço integrado e integrante à sociedade, as escolas reproduzem e produzem o racismo, mas também produzem subversões, fugas e estratégias. Longe de salvar o mundo, a escola é um espaço para a cocriação de muitos mundos. Nosso intuito aqui é fornecer pistas para pensarmos de que maneiras podemos nos movimentar, seguindo o convite de Angela Davis, na direção de uma sociedade antirracista, ou pelo menos, de uma Educação antirracista. Compartilharemos a seguir conceitos importantes que compõem o racimo no Brasil e que precisam ser compreendidos e desmistificados, bem como termos e políticas que nos ajudem a mobilizar uma Educação antirracista.
QUEM É LORRAINE ANDRADE?
Lorraine Andrade Gonçalves é Professora do Setor de Educação Infantil do CAp-UFRJ. Pedagoga pela UNIRIO, Especialista em Docência na Educação Infantil, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pela UFRJ. Coordena o Projeto de Pesquisa e Extensão Currículo em Movimento na Educação Infantil CEIMOV-
UFRJ e integra o Bafo! Grupo de Pesquisa sobre Currículo, Ética e Diferença. É organizadora e autora do livro “Educação Infantil: promovendo encontros”.
Realiza pesquisas sobre Currículo, Educação Infantil e Infância articulada à filosofia da diferença, aos estudos feministas e ao feminismo negro.
AÇÕES AFIRMATIVAS
As ações afirmativas são políticas de reparação histórica que viabilizam condições básicas para que grupos minoritários tenham condições de participação e acesso a bens culturais, sociais, econômicos e políticos. Tais ações têm como função promover o fundamento constitucional da igualdade dos sujeitos brasileiros, a partir da correção de desigualdades e marginalizações produzidas historicamente, garantindo direitos negados aos grupos minoritários, aumentando suas participações em processos políticos e acesso à saúde e Educação e redes de proteção social. As ações afirmativas são direcionadas à reparação de discriminações de cunho étnico, racial, de gênero, de pessoa com deficiência, de classe e religioso e são fruto da luta destes grupos. Além disso, também são as ações afirmativas que muitas vezes viabilizam a produção da representatividade em muitos espaços.
RACISMO
Geralmente as pessoas associam o racismo à prática da injúria racial, que seria a verbalização de palavras ofensivas dirigidas às pessoas negras, como por exemplo, o caso do jogador de futebol Vini Júnior, vivido há pouco tempo na Espanha. No entanto, a reprodução do racismo acontece de diferentes modos, além da injúria racial. Podemos citar, por exemplo, o “racismo recreativo”, uma prática ainda muito comum no Brasil, onde a diferença entre as raças é abordada em tom humorístico, reproduzindo estereótipos, sujeições e produzindo constrangimentos. Também há o racismo velado que, apesar de muitas vezes não ser nomeado como tal, reproduz a ideia do exotismo ou mesmo o silenciamento e a exclusão do corpo racializado. O racismo como prática que organiza a sociedade tem como pretensão estabelecer uma hierarquia entre as pessoas tendo como justificativa a raça e ou etnia.
REPRESENTATIVIDADE
Visto que as diferenças de acesso a bens econômicos, culturais e sociais em nosso país são marcadas pela raça, é a partir da ocupação em diferentes lugares e posições sociais por corpos dos grupos minoritários que as pessoas negras têm a possibilidade de se ver ocupando espaços de prestígio social. A insubmissão surge como a possibilidade de perceber à sua volta outros caminhos possíveis, que não sejam apenas o da servidão e da subserviência, que constantemente são apresentados como o lugar de direito do corpo racializado. No entanto, é preciso estarmos atentos ao fato de que a presença de pessoas que integram grupos minoritários em determinadas posições sociais raramente terá a possibilidade de mudar a estrutura social, por ser, geralmente, uma representação de âmbito institucional ou local. Além disso, nem sempre as pessoas que ocupam tais posições tem poder decisório, ou mesmo optam por repercutir as reivindicações do grupo a que pertencem, seja por divergência ou mesmo por desidentificação. Ter representatividade não significa o fim do racismo, mas evidencia alguns resultados da luta antirracista.
MERITOCRACIA
Em decorrência do “mito da democracia racial”, a meritocracia julga que se todas as pessoas são iguais, bastando o esforço individual para que seja possível conquistar aquilo que se deseja. Essa cilada da meritocracia, que supõe que “todos conseguem, basta querer”, se articula à suposta igualdade racial antes mencionada. Esta proposição individualiza o mérito e a dedicação de cada sujeito, mas ignora que as diferenças de acesso a bens econômicos, culturais e sociais em nosso país, sejam marcadas pela racialização dos corpos. Visto o contexto neoliberal que vivemos, a desigualdade é justamente o que sustenta o funcionamento das relações, estabelecendo hierarquias e possibilidades de aquisição de bens, sejam eles financeiros ou intelectuais. Nesse sentido, os movimentos para uma Educação antirracista precisam caminhar na direção de modificar o sistema racista que estrutura e organiza a nossa sociedade, oferecendo às nossas crianças condições e possibilidades de criarem seus próprios caminhos, a partir da isonomia de condições de acesso e apropriação de bens culturais, sociais e econômicos.
RACISMO ESTRUTURAL
Silvio de Almeida, jurista e atual ministro dos Direitos Humanos em nosso país, propõe que o racismo é estrutural e como tal organiza a nossa sociedade estabelecendo hierarquias, ordens econômicas e sociais que ressoam em nossas práticas, ações e relações cotidianas. As diferenças de acesso a bens econômicos, culturais e sociais são marcadas pela raça, pela classe e pelo gênero, perpetuando o privilégio de determinados grupos sociais. Como processo histórico e político, o racismo pauta processo de discriminação sistemático que marca os corpos desde os lugares sociais que ocupam até a violência policial sofrida cotidianamente. Portanto, a raça marca o privilégio ou a desvantagem, a depender do grupo étnico ao qual pertencemos, definindo inclusive a possibilidade de vida e morte de determinados sujeitos, justo porque suas vidas são qualificadas de acordo com a cor da pele, o fenótipo corporal, a classe social, a sexualidade, o gênero e a raça. Entender que o racismo é estrutural implica perceber como a estrutura social produz a desigualdade racial.
MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Este mito compõe um discurso amplamente difundido no Brasil ao final do século XIX e começo do século XX, influenciado pela comparação dos processos de escravização e pós escravização vividos em diferentes países. Nesta comparação, dizia-se que o Brasil conseguia estabelecer uma certa “harmonia” entre negros e brancos, diferentemente dos processos vivenciados pelos Estados Unidos com o Apartheid, por exemplo. Dessa forma, o mito da democracia racial consiste na afirmação de que somos todos iguais, de que no Brasil não existem diferenças entre negros e brancos e, portanto, não é possível a existência do racismo. Este mito vigora até os dias atuais e segue promovendo violências devastadoras para a população negra brasileira. Do negro de pele clara ao negro de pele retinta, o racismo à brasileira acontece nas mesmas gradações do tom da pele. A frase “Não devemos ter dia da consciência negra, mas dia da consciência humana”, geralmente difundida no mês de novembro, é o puro suco do racismo, fruto do “mito da democracia racial” que tenta apagar não só as diferenças como também os séculos de exclusão, violência e descaso com a população negra no Brasil.
LEGISLAÇÕES EDUCACIONAIS
No campo da Educação, algumas legislações são fundamentais para a garantia de uma Educação antirracista. Estes aparatos legais também foram conquistados através das lutas promovidas pelos movimentos sociais. A primeira delas é a Lei 10.639 de 2003 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, acrescentando ao currículo educacional brasileiro a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas. A Resolução nº1 de 17 de junho de 2004, que estabelece as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, é documento fundamental para o fortalecimento das identidades negras, relacionadas à afirmação de direitos, à promoção de conhecimentos sobre a diversidade histórica e política do nosso país, bem como a fundamentação para o combate a práticas racistas e discriminatórias no âmbito da educação. Além destes documentos, a Lei 11.645 de 2008 acrescenta a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Indígena à lei anteriormente mencionada.