Foi a brasileira Giovanna Graziosi Casimiro a responsável pelo primeiro grande desfile virtual realizado em um ambiente novo: a plataforma Decentraland, o Metaverse Fashion Week. Pesquisadora de arte e tecnologia, Giovanna se especializou em produzir e gerenciar projetos de design digital, estamparia de modas e instalações digitais. O seu amor por moda e alta costura pode se encontrar com todos esses interesses neste evento pioneiro, denominado Metaverse Fashion Week. Realizado em março de 2022, o desfile de modas reuniu algumas das principais grifes mundiais.
Segundo Giovanna, trabalhar com o metaverso é uma experiência instigante: “Eu tenho me aprofundado em projetos relacionados a mundos virtuais e expandidos. Esse mundo me atraiu porque eu sempre gostei do lúdico, do holístico, do místico e do desafiador, e acho que a possibilidade de reconstruir a realidade é formidável. A ideia de redesenhar o mundo ao nosso redor de modo híbrido sempre me fascinou, e possivelmente a minha infância de filmes de sci-fi também contribuiu para isso”.
Pensar coletivos e novas governanças pode parecer utópico, porém, mais do que nunca, esses termos renascem nesta década, devolvendo o poder de decisão aos usuários e transformando a internet em um espaço de poder comunitário e empatia. Após duas décadas de internet 2.0, a segunda geração de comunidades e serviços, que vê a “internet enquanto plataforma”, nos confrontamos com questões cruciais do futuro do ciberespaço. E, ao longo dessa jornada tecnológica, observa-se a drástica transformação dos valores que sustentam a atual web. Acima de tudo, a internet 2.0 apresenta problemas basais no que tange à segurança da informação, à privacidade do usuário ou mesmo à participação dos indivíduos na construção das ferramentas disponíveis a todos. A liberdade do indivíduo é posta em xeque à medida em que a internet 2.0 coloca em risco a estabilidade emocional, social e cultural de muitos grupos.
Nesta direção, cito Michel Foucault (1999), que afirma a relação entre a domesticação dos corpos e a revolução industrial. Sob um ângulo contemporâneo, as tecnologias digitais da web 2.0 domesticaram nosso emocional e normalizaram a falta de privacidade. Tornamo-nos humanos mais mansos, confinados e submissos, afinal, como afirma a autora Giselle Beiguelman (2017), a web é suavizada, sem serifas, sem cantos duros ou quinas. Nas últimas duas décadas de revolução tecnológica, fomos reféns de um sistema opaco e centralizador, similar ao panóptico apresentado por Foucault.
Vinte anos depois, o mundo se depara com uma pandemia que coloca em xeque o valor das ferramentas digitais na vida cotidiana. Em consonância, nos últimos anos, surgem diversos escândalos associados ao vazamento e vendas de dados privados por grandes monopólios da internet (por exemplo, Facebook), desmistificando a ideia de uma internet igualitária e segura. Evidencia-se que a web 2.0 toma um caráter corporativo e extrativo, cujo modelo de negócio se dá na capitalização do usuário. O impacto dessas notícias é a conscientização dos indivíduos sobre o seu poder na internet enquanto agentes ativos nesse ecossistema – e não passivos. Nessa onda de conscientização e busca de uma nova identidade da internet, os movimentos open source e de criptografia ganham espaço, renovando o debate sobre o futuro da web.
Em meio a esta revolução, diversos projetos descentralizados e no blockchain nascem, incluindo a fundação das criptomoedas e os primeiros metaversos descentralizados -– caso da Decentraland, Sandbox, entre outros. Tais mundos virtuais nascem de uma estrutura econômica e social inédita, não centralizada, baseada em terras virtuais, e no poder de voto distribuído, utilizando outros modelos de governança para além dos já conhecidos. Esses mundos virtuais se tornam espaço de experimentação para novas governanças via DAOs (Decentralised Autonomous Organisations) e uma economia distribuída entre muitos, potencialmente igualitária. Deste modo, a gradual transformação da internet faz nascer novos paradigmas que impactam também o mundo físico, o futuro das governanças, a política e as finanças.
Dentro de plataformas descentralizadas do metaverso no blockchain, estabelece-se os primórdios da web 3.0, também chamada spatial web, composta por mundos virtuais tridimensionais navegáveis que cumprem funções similares à dos sites na internet padrão, porém com referências cartográficas e espaciais. Espera-se que marcas, corporações, empresas e organizações ao redor do mundo transitem do mundo 2D para o 3D, expandindo as possibilidades de experiências, em uma narrativa visual imersiva.
Enquanto produtora e líder da semana de moda no metaverso, eu observo nesse novo ecossistema possibilidades ainda mais profundas no campo cultural e social. Metaversos abertos e DAOs são um sistema de horizontalização da economia digital, onde em que usuários fazem parte do processo criativo e de gerenciamento das plataformas. As comunidades de NFTs garantem a remuneração dos artistas, permitindo que criadores recebam um percentual fixo a cada venda de uma peça.
A MODA E A WEB 3.0
No campo da moda, a web 3.0 traz à tona a importância das comunidades virtuais,
do senso de pertencimento e da construção de identidade para além do mundo físico.
No campo da moda, a web 3.0 traz à tona a importância das comunidades virtuais, do senso de pertencimento e da construção de identidade para além do mundo físico. Inúmeros distritos de estilistas virtuais emergem em espaços como a Decentraland; arquiteturas impossíveis são criadas por arquitetos metavéersiícos; músicos, DJs e performers tomam posse da autoria das próprias peças no mundo digital sem mediadores; o mercado imobiliário gradualmente transita para essas plataformas, abrindo possibilidades de investimento e colaboração entre todos. A conclusão disso é que diversas verticais imergem nos espaços virtuais, criando estratégias inovadoras focadas em comunidades virtuais criativas. Um novo mundo nasce.
Um caso particular a ser tratado, foi a Semana de Moda no Metaverso, que reuniu mais de 70 marcas de luxo e streetwear, e teve 7 Bilhões de impressões nas redes sociais e a cobertura do evento por mais de 500 outlets de mídia impressa. Foi uma forte demonstração de que indústrias de diversos setores estão atentas às comunidades descentralizadas e seu poder de mudança, apontando para um grande interesse nesta indústria e as transformações que isso acarreta.
A gestora financeira J.P. Morgan recentemente publicou seu relatório anual no qual menciona “os elementos de uma nova era digital estão convergindo em escala. O metaverso é a força motriz unindo estes elementos numa experiência unificada e imersiva”, apontando para 18.41 bilhões de Euros gastos pelos usuários In-game até 2027. Atualmente a Decentraland tem em torno de 100 mil usuários ao mês, e esse número tem flutuado de acordo com o mercado cripto. Logo após o anúncio da Meta, o número de usuários mensais subiu para 500 mil ao mês, e gradualmente se estabilizou no percentual atual.
Essas flutuações apontam para um período de transição, porém, caracteriza-se pelo início de uma transformação cultural e tecnológica sem precedentes. Observa-se a nova geração da internet composta de criadores digitais e marcas lado a lado, em um processo de cocriação e colaboração nunca antes visto. As comunidades criativas tomam a frente nessa “Era dos Artistas” através de soluções tecnológicas – mas, sobretudo, criativas –, e as comunidades e DAOs passam a tomar decisões-chaves que beneficiam mais indivíduos em seus processos.
O que está por vir será resultado de um conjunto de fatores, entre eles a educação dos usuários para tomarem posse desses mundos virtuais abertos. Espera-se que, nos próximos anos, a quantidade de usuários ativos cresça, e as transações em web 3.0 se tornem mais populares, bem como o blockchain e as moedas digitais. Como parte desta breve reflexão, termino com a provocação de que a transformação em curso proporciona o reencontro dos indivíduos com o exercício político clássico – trazendo-o de volta agora à vida –, onde e que pessoas lidam com pessoas na tomada de decisões, não com instituições. Finalmente, a web abre portas para a humanização das ferramentas digitais, na qual pessoas estão acima dos interesses corporativos, e onde usuários têm participação em processos e prezam pela transparência. Por fim, para além das comunidades, vê-se nascer um outro conjunto de valores-base para a sociedade do futuro, e graças a web 3.0, surgir uma rede de pessoas, onde na qual o blockchain vira o “lovechain”.
FIQUE POR DENTRO
Conheça mais sobre os termos utilizados no universo da web 3.0
WEB 3.0
Também conhecida como web semântica, a Web 3.0 é a terceira onda da internet mundial. Neste novo estágio, o foco da rede digital é o empoderamento do usuário, através de tecnologias que permitam o processamente de um maior volume de dados e a descentralização.
CRIPTOMOEDA
A criptomoeda ou cibermoeda é um meio de troca que se utiliza da tecnologia blockchain e da criptografia para trazer segurança de transações digitais e descentralizadas. Assim como nas moedas tradicionais, existem diferentes tipos de criptomoedas. As mais conhecidas delas é o Bitcoin e a Ethereum.
BLOCKCHAIN
Também conhecido como “protocolo de confiança”, a blockchain é uma tecnologia de registro que visa a descentralização como medida de segurança. É um livro-registro, uma base de dados distribuída que registra as transações em rede. Por meio da tecnologia é possível garantir segurança e transparência nas transações, a partir da verificação da identidade online.
DAO
A sigla DAO vem do inglês “decentralized autonomous organization” (organização autônoma descentralizada). As DAOs são organizações que possuem regras específicas, que são asseguradas por contratos inteligentes, como são denominados os programas de computador que são executados e validados por uma blockchain. As DAOs permitem que haja um contrato formalizado entre todos os colaboradores de determinada organização, e que estes possam ter informações em tempo real sobre os fundos investidos e outras informações em torno das atividades da organização.
METAVERSO
O metaverso é um tipo de experiência imersiva que une o mundo físico e o digital num ambiente digital, através da realidade virtual e outros dispositivos digitais. É um espaço virtual compartilhado, que também é denominado de “realidade aumentada”.
NFT
O termo NFT vem do inglês “non-fungible token” (token não fungível). Se um bem fungível é um bem móvel que tem o atributo de ser substituído por outro de mesmo valor, assim como a moeda, o NFT está na mesma natureza das obras de arte, objetos únicos que não podem ser substituídos. Assim, o NFT tem como objetivo criar escassez digital verificável, propriedades digitais que se valorizem como produtos individuais e específicos. Os NFT são usados para a criação de arte criptográfica e cripto-colecionáveis.
DECENTRALAND
A Decentraland é um metaverso, um mundo virtual no blockchain descentralizado e governado por seus usuários. Logo, é uma plataforma que permite a construção e acesso em tempo real de um mundo tridimensional na web e também para desktop, que funciona como um espaço de construção de comunidades, socialização, narrativas e games. Acima de tudo, consideramos a Decentraland uma experimentação social que pode apontar para o futuro das redes sociais.
CRYPTOVOXELS
Criada em 2018, a Cryptovoxels é uma plataforma de metaverso que se utiliza do blockchain Ethereum. É, junto com a Decentraland, a principal plataforma em atuação no metaverso.