Esta é a primeira edição da Revista Humanos, que busca trazer em seu conteúdo o encanto pelo conhecimento, mesmo nas pesquisas que são despretensiosas. No seu livro “A vida não é útil”, você faz uma crítica à técnica, à produtividade. O que você pensa sobre o fascínio pelo conhecimento, pelos saberes?
Eu observo que esse fascínio pelo conhecimento não é exclusivo da espécie humana. Nesta semana, eu fui surpreendido com uma imagem muito linda de um primata pequenininho que ocorre só numa região da Amazônia. É um primata, um serzinho muito pequenininho. Um sagui pigmeu (Cebuella pygmaea). Ele é tão pequenininho e estava no galho de uma árvore e tocando um outro ser que é uma espécie de Louva-a-Deus, na verdade, é aquele que a gente chama de Esperança, porque é verdinho.
Então é um pequeno animalzinho dentro da floresta analisando a estrutura de um outro animalzinho da floresta. E ele analisa, vai sensivelmente tocar a estrutura das pernas, as articulações e depois suavemente põe o dedinho na asa. O que é interessante é que o outro corpo que está sendo pesquisado não reage, de maneira que não foge e nem reage de maneira hostil, ele permite aquele afeto curioso de alguém que está querendo conhecer aquele organismo que está ali perto dele. Então essa inteligência não é exclusiva do homo sapiens.
Eu começo dizendo isso porque eu tenho percebido um excesso de especismo em tudo que nos move. Os humanos acham que são os únicos seres interessantes e interessados em conhecimento, em conhecer, e ignoram solenemente bilhões de outros seres, inclusive alguns vírus que estão interessadíssimos em nós. Esses outros seres estão interessados em conhecer a gente. Aquele primata, aquele sagui tão pequeno analisando um outro ser num galho, ele está mostrando o interesse dele por conhecimento. É pesquisa, é conhecimento.
Por que que nós acreditamos que só as comunidades humanas são capazes de uma experiência tão maravilhosa? E esse maravilhamento está presente em tudo. Na biosfera do planeta todo! Ele é expresso por baleias, golfinhos, pássaros, peixes, todos os outros seres que coabitam a biosfera do planeta Terra conosco.
Os animais têm uma capacidade maravilhosa de atualização, invenção, eles não estão parados. Nada está parado ao nosso redor, mas nós acreditamos que nós somos os únicos capazes de uma disposição para alguma coisa como a ciência, o saber, o conhecimento. Como se fosse patrimônio dos humanos. Não é. Os outros seres estão o tempo inteiro descobrindo mundos, criando inclusive camadas de mundos. Nessas outras camadas de mundo são produzidos tantos sentidos quanto nessa camada de mundo que nós convencionamos chamar de realidade onde a gente deita e rola.
Dito isso, a gente pode voltar ao terreno dos humanos e dizer que, para os humanos, o conhecimento é uma possibilidade de transcendência. Quer dizer, de sair do atoleiro, sair do pântano. É o conhecimento que atina pra essa mudança. Os humanos não conseguem ter muita atenção com esse propósito, e acabam fazendo uma espécie de dois passinhos para frente e um pra trás. É por isso que de vez em quando nós estamos imersos em um conservadorismo. E no negacionismo típico desse começo do século XXI, em que a maioria das pessoas que tem poder no mundo hoje são negacionistas. O Putin é negacionista. O presidente da Ucrânia é negacionista. O Biden é negacionista.
Nós estamos imersos no mundo de homens com muito poder e que negam esses conhecimentos. Eles negam a ciência e negam conhecimento. Eles apropriam-se de alguns cintos de utilidade, né? Parecendo aquelas coisas do Batman. O Batman tem um cinturão de utilidades, e esses sujeitos também fazem isso. Eles pegam o cinturão de utilidades, podem até botar uma grife de ciência e conhecimento, mas o que está ali movendo aquele sujeito é só a utilidade. É como esse sujeito da Tesla, o Elon Musk, por exemplo. Ele diz que agora quer fabricar robôs. Ora, será que o mundo está precisando de fabricação de robôs? Nós estamos precisando agora de ter uma consciência da nossa inadaptação ao ecossistema terrestre e a necessidade de um esforço universal amplo pra que a gente buscasse fazer uma conciliação com o ecossistema terrestre numa perspectiva de biociência.
Seria uma bioecologia, buscar uma ecologia de vida. O maior investimento que os humanos podiam fazer diante das mudanças climáticas seria descobrir como aquele pequeno Sagui lá da floresta percebe a estrutura daquele serzinho verde que está ali pousado num galho e que ele quer conhecer melhor.
Nós precisamos conhecer melhor a biosfera do planeta antes de financiar viagens pra Marte. Financiar viagens pra Marte antes de conhecer a nossa própria casa é um tiro no pé. É anticiência. Não é ciência e me incomoda muito o fato de que a NASA, que durante muito tempo foi uma agência que atraía a atenção e admiração de gente no mundo inteiro, porque parecia que eles privilegiavam a ciência, agora virou uma instituição público-privada. Tem uma parte da NASA agora que está alugada pro Jeff Bezos, aquele outro bilionário. Ele e a gangue dele alugaram a NASA para fazer esses voos de dez minutos no espaço. Eles mandam foguetes da base de lançamento como se fossem fogos de São João.
“O maior investimento que os humanos podiam fazer diante das mudanças climáticas seria descobrir como aquele pequeno sagui lá da floresta percebe a estrutura daquele serzinho verde que está ali pousado num galho e que ele quer conhecer melhor.”
Eles banalizaram a tecnologia, transformaram a tecnologia num instrumento de exibição – exibição de poder. O que não é muito estranho porque, na última experiência que a gente teve há setenta anos atrás, com o anúncio da Guerra Fria, o que os poderes políticos do mundo estavam fazendo era exibicionismo. Eram alguns sujeitos, muito machos, se exibindo de um lado e do outro dizendo que iam apertar um botão e destruir o mundo.
Passaram-se setenta anos, estamos no século XXI, e ainda tem gente se exibindo por aí. Então esse exibicionismo tira a energia necessária que essa precária humanidade desigual ao extremo poderia canalizar para a gente melhorar. Nós podíamos melhorar.
Mas para a gente melhorar precisa canalizar essa energia exibicionista. Trocar essa que só exibe os músculos para uma que projeta luzes. Luzes sobre as nossas próprias ignorâncias, como diz o Manoel de Barros. Esse poeta maravilhoso é quem nos lembra que somos habitados por ignorâncias e não por conhecimento. O conhecimento a gente precisa buscar.
A questão do antropoceno, que tanto você tem abordado em suas falas e trouxe aqui, traz uma crítica ao humano que acredita estar sempre no centro do debate, como único detentor dos saberes. Estendendo ainda este assunto, poderia nos contar mais sobre essa visão da vida como um grande coletivo – para além do humano.
A vida é como transcendência. A natureza transcendente da vida é exatamente esse atravessamento de todos os corpos sem distinção de organismo. O organismo árvore é um organismo, baleia é um organismo, girafa ou formiga são invólucros da vida, assim como o meu corpo e o seu corpo. Nós somos invólucro de vida. A vida está passando na gente. Esse momento agora que nós estamos experimentando aqui de confabulação, ele é a vida em nós. Quando o invólucro Ailton encerrar, continua em outro lugar, em outros termos, em outros corpos. O maravilhamento da vida, nesse sentido, vai além da compreensão do coletivo. Porque o coletivo ainda é alguma coisa do campo do humano, digamos assim.
O coletivo, a experiência do coletivo, a própria consciência do coletivo é uma produção humana, da mente humana. É um cardume de milhões de tainhas que não pensa que é um coletivo. Ele é. Então, nós quereremos ser coletivo. Queremos, ansiamos por, mas nós não somos. É esse cardume de milhões, bilhões de tainhas que está fazendo sua jornada agora em algum lugar do oceano, ele não tem um propósito coletivo, eles são. Parece que nós estamos sendo convidados a pensar em outros termos, como se a gente estivesse numa escola taoísta.
Você não vai pensar em fazer. Você não vai pensar na ação. Você é uma ação. Você é. Então, quando nós ansiamos pelo coletivo, nós estamos na verdade denunciando uma carência e uma falta dessa experiência no nosso corpo, na nossa medula, na nossa arquitetura social, entende? Disso que nós chamamos de coletivo.
É como se nós pensássemos que uma imagem no espelho é o corpo que projeta a imagem. Nós pensamos em coletivo muito mais como carência do que como experiência. Para atravessar esse lugar, nós teríamos que sair desse lugar do especismo humano e fazer o que a filhinha de uma querida amiga me contou há uma semana atrás.
Elas estavam andando no jardim e a filhinha dela perguntou pra ela: a gente não vai se desviar das formigas? Eu fico feliz que tenha crianças com oito anos, onze anos, perguntando para os seus pais: “vocês não vão se desviar da formiga?” As formigas estavam passando por um caminho onde os humanos tinham que atravessar e a criança pergunta “você não vai desviar das formigas?”. A gente não desvia nem do outro humano que está diante de nós a gente, atropelamos.
A gente atropela um elefante, a gente atropela um dinossauro, porque nós acabamos criando uma marca tão funda na terra que nós já estamos habitando uma era que é antropocena. Essa buzina que vocês escutam de vez em quando, ela está a frente de uma composição de mais de trezentos conteineres entupidos de minério levando uma montanha que o poeta Carlos Drummond de Andrade já chorou a perda há muito tempo.
É como se a gente estivesse fazendo uma viagem ao passado em que o Drummond disse que a cidade dele era só um retrato na parede e esse trem da Vale está passando a quinhentos metros daqui da margem do Rio Doce, me lembrando que o mundo está em acabamento. Nós entramos em fase de acabamento. Pra mim não é uma ideia.
O antropoceno pra mim é uma experiência cotidiana de assistir as montanhas passarem na forma de migalhas. Em cima de composições que vão levar para o Porto de Tubarão. De lá eles vão entrar em navios e vão pra qualquer lugar do mundo. Se Maomé não vai à montanha, a montanha está indo pra Maomé. Mas nem por isso a vida deve perder a poesia. A vida já estaria perdida há muito tempo se não tivesse poesia.
Como você pensa a diferença entre coletividade, comunidade e nação?
São diferenças imensas, tanto do ponto de vista etimológico de cada palavra, quanto no sentido que elas expressam na língua portuguesa, por exemplo. Quando eu era jovem me movi junto com os meus colegas e criamos uma iniciativa chamada União das Nações Indígenas. Porque havíamos entendido que os nossos antepassados, com grupos de trezentas, quinhentas ou mil pessoas, tinham uma cultura, uma história, uma língua, uma cosmovisão própria. Eles correspondiam a essa ideia de nação.
Essa ideia de nação veio do século dezoito. É uma ideia construída. A sociedade foi ficando complexa e inventaram essa história de nação como uma maneira de organizar o carnaval. Nação é uma invenção e é, portanto, uma ficção. Nação Zumbi, por exemplo, eu gosto da música da Nação Zumbi. A nação alvinegra, a nação sei lá o que. Então nação é coletivo.
Em comunidade, já vamos diminuir o zoom e aproximar um pouco mais da escala humana. É possível imaginar um coletivo de propósito bem simpático querendo, por exemplo, cuidar de uma praia, cuidar de um território, cuidar de uma aldeia ou de um quilombo ou mesmo de uma cidade. Pode ser um coletivo urbano que quer cuidar da cidade, plantar jardim vertical, horta no telhado, limpar a rua, não jogar lixo na rua, ser amável com as pessoas que circulam, não se comportar como predadores.
Infelizmente, na maior parte dos ambientes onde se reúnem coletivos, nós temos quase que guerra campal. As pessoas rosnam. Faz parte do tempo de hoje as pessoas rosnarem. Então, essa é a ideia do tempo útil, da vida útil, da aglomeração que não é um coletivo. Uma aglomeração não é um coletivo. E uma comunidade implica cumplicidade.
É por isso que a gente diz: “Ah, tem uma comunidade de abelhas!” Ou uma comunidade de maritacas. Elas têm cumplicidade. Elas procuram mais ou menos criar códigos de linguagem comum. Falar uma mesma língua, por exemplo. Seja com o gesto, seja com qualquer outra expressão do corpo ou de falar uma língua. É um desejo de comunicação pacífica. Se a comunicação não é pacífica, o resto todo vira uma espécie de simulacro. Até a comunidade vira um simulacro.
Mas a gente pode ter uma comunidade também de predadores que se reúnem pra predar num território, um país, uma nação. E aí a gente abre de novo o zoom pra uma perspectiva da crítica política, digamos assim. Ou crítica da política. Esse ambiente que ficou cada vez mais difuso e que quando você fala em política tem dificuldade de qualificar o que política.
A política grande, a grande política, macropolítica política, feita no mundo hoje, a geopolítica, ela é predatória. Nós temos uma guerra na Europa, esse lugar que gostava tanto de exibir um retrato bem comprido. Agora a gente tem uma guerra e aqui no continente americano o que que nós temos? Uma espécie de ressaca. A gente está experimentando uma ressaca no continente americano e na Europa um bode. Então imagina você habitar um planeta onde tem um continente que é um bode e o outro quer uma ressaca? Aí você fica perguntando e o resto do mundo? E a e a China? E a Ásia? E a África? Ai meu Deus!
Sabe, quando eu olho, quando eu presto atenção no corpo vivo de Gaia, no organismo da Terra, eu fico imerso nessa potência regeneradora, auto-regeneradora do organismo da terra e evito a primazia, a lógica e a racionalidade dos humanos. Os humanos precisam aprender com as formigas.
Dentro deste senso de comunidade, como você vê a relação com a ancestralidade e a memória?
O tema ancestralidade tem sido quase que banalizado na literatura, nas artes, nas narrativas plurais que circulam por aí. Ele é apropriado de uma maneira quase que oportunística mesmo. É como se houvessem descoberto que tem alguma coisa muito nova, uma praia muito bonita e a gente quer invadir essa praia.
Acontece que o termo ancestralidade tem um eco de uma espécie de memória muito profunda, memória das pedras, memória da terra, memória da montanha, memória de seres extra-humano, digamos assim.
Existe essa palavra muito complicada, que é evoluir. Então, seria legal fazer uma correção de que ancestralidade não é exatamente antiguidade, não é alguma coisa que evoluiu para o que somos hoje, mas é uma experiência sensível da vida. E podia ser a experiência de reverenciar a vida em tudo. Porque quando nós reverenciamos a vida em tudo a gente não distingue o humano, no sentido especista, de uma montanha, de uma floresta ou de um rio. Nós vamos entender que a vida está em todos esses corpos. No corpo da floresta, no corpo dos humanos e também de um rio. Mas a gente admite a violência contra um corpo diferente, como o rio, por exemplo.
Eu estou aqui na beira do rio Doce, que chamamos aqui de Uatu. Nós cantamos para esse rio. Agora esse rio está em coma. Há sete anos atrás uma lama devastou a bacia do Rio Doce e ele entrou em coma, diziam o rio morreu. O rio está morto. É como se fosse um laudo técnico.
“O termo ancestralidade tem um eco de uma espécie de memória muito profunda, memória das pedras, memória da terra, memória de seres extra-humano, digamos assim.”
Olha, não tem coisa mais oportuna para o capitalismo do que você decretar que alguma coisa acabou. Porque daí você aciona os outros contratos e toca a vida. A gente faz isso com montanhas, com rios, com florestas e estamos imersos nisso que a gente chamou de antropoceno. Assim, quase tudo que a gente fizer daqui pra frente é mitigação. Apesar de todo o discurso da sustentabilidade dessa insistente… grife, né? De dizer que alguma coisa é sustentável. Desde esse frasquinho que carrega um café, o líquido… todos botam um carimbinho de sustentável, quer dizer, se tornou um selo de garantia para o mercado.
Se nós continuarmos exaurindo os outros organismos todos da terra e botando o selo de sustentabilidade neles, vai chegar uma hora que nós vamos entrar na lista das espécies em extinção. Os humanos. O que pra mim já viria tarde. Eu gostaria que os humanos entrassem na lista de das espécies ameaçadas de extinção com a mesma urgência que o mico-leão-dourado. Porque os humanos são tão caras de pau que eles fazem listas de espécies em extinção! Porque o humano é a espécie, tá? É o topo da pirâmide. É uma declaração de arrogância tão abrangente que quando nós fazemos uma crítica de algum comportamento autoritário, até nisso nós estamos sendo discricionários. Porque tudo é autoritário na maneira de se organizar. Nesse mundo dos humanos tudo é autoritário.
Nós habitamos um mundo onde o princípio é o do autoritarismo, que já foi chamado de patriarcado e outros nomes. Esses humanos estão no cume da pirâmide. É de lá que esses caras disparam mísseis. É de lá que decidem orçamento secretos. O Biden deu trinta e dois bilhões de dólares para a Europa comprar arma. Trinta e dois bilhões de dólares poderiam ajudar um pouco a mudar, por exemplo, a matriz energética da América Latina, ao invés de continuar sendo de combustível fóssil.
Devia desativar essa indústria de automóveis. Essa sucata de automóveis, essas coisas de duas toneladas, vinte toneladas que carrega uma pessoa lá dentro. É ridículo, é indecente.
Ailton, você tem essa trajetória fantástica de mais de quarenta anos ativamente trabalhando com coletivos e com comunicação em diversos meios, como rádio, por exemplo. O que você pensa sobre as formas de comunicação e as redes hoje – o que que elas possibilitaram e o que que elas desabilitaram?
Olha, eu acho um desafio imenso alguém manter a serenidade no meio de tanta convergência midiática digital, com tudo quanto é disparo. O campo disso que a gente chama de comunicação hoje é uma violência tão grande que quase que a gente não consegue estabelecer contornos pra isso. É desse ambiente que surge essa ideia da fake news, quer dizer, da informação envenenada. É como se a tecnologia tivesse facilitado ou promovido uma espécie de cadeia disruptiva. A disrupção na comunicação é tão grande que as pessoas estão ainda correndo atrás. O humano é uma espécie assim, que vai acordar depois do tapa no ouvido.
Não tem comunicação sensível no mundo hoje. A comunicação é violenta. E quando nós atuamos no sentido de uma comunicação pacífica é como se nós estivéssemos fazendo um cuidado terapêutico. Nós estamos conscientemente evitando a violência com a comunicação pacífica. Porque o horizonte, o universo amplo da comunicação, pensando nas grandes mídias, nas cadeias de mídia no mundo inteiro, desde aquelas televisão norte-americana, europeia e as outras mídias que acontecem no submundo, é no registro mesmo da guerra, da contrainformação, da violência e da produção de violência no mundo.
Isso cria um inframundo da comunicação que contamina todo o ambiente, inclusive esse mundo pacífico que a gente pensa que compartilha. Ele está envenenado por esse inframundo. Tanto que já existe uma coisa que se chama infraweb. Quer dizer, tem um submundo que fica o tempo inteiro disparando mentira, conceitos contra a informação, desinformação, negacionismo, enquanto uma parte pequena desse mundo sopra para ver se alivia o dano.
Nós estamos agora vivendo na era da mitigação. Nós não estamos mais numa experiência ampla de expandir a experiência do humano, de criar comunidades para ampliar nossos horizontes, digamos, de subjetividade. Nós estamos sendo quase que comprimidos. É uma situação de ficar escapando de bala perdida. Aqui a bala perdida é fake news, é mentira, desinformação.
É impressionante como o século XXI nos surpreendeu com o negacionismo. O negacionismo é uma ordem global. Você tem negacionista em Dubai, em Nova Iorque, em Londres, em Paris. Você tem negacionistas em qualquer lugar do mundo. E estamos chegando numa situação em que o negacionismo e o cinismo se tornaram sinônimo. Todos os cínicos do mundo uni-vos. Eles criaram a bandeira do negacionismo. Apropriação de símbolos que eram afetivos por sujeitos totalmente cínicos. Esses sujeitos conseguem se apropriar desses símbolos e manipular os nossos afetos, as nossas pulsões de afeto. Nós estamos num mundo em convulsão. Eu até disse, não é revolução, é convulsão. É como se fosse um ataque epilético. O mundo está epilético.
Então, quem ainda mantém a serenidade? Quem tem um pouco ainda de serenidade, como diz aquela canção do Lenine, né? O corpo precisa um pouco mais de alma. O corpo precisa um pouco mais de calma. E não de aceleração. A ideia de disrupção foi apropriada pelas corporações, todo mundo quer inventar alguma coisa nova. É um risco fatal pra todos nós. Nós já inventamos coisas demais.
Outro dia me ocorreu que essa ideia da disrupção é um surto em relação ao presente. É um desconforto em relação ao presente. A gente não suporta o presente. Então a gente quer escapar daqui pra um possível futuro. Acontece que a possibilidade do futuro ser muito pior do que o presente dá de dez a zero em qualquer outra hipótese mais otimista. Então, que tal a gente parar de inventar tanta coisa e fazer um inventário de tudo que a gente já tem disponível? A gente tem tanta coisa disponível!
Dizem que a construção civil no Brasil é responsável por sessenta por cento de todo o despejo, quer dizer, de tudo que é entulho, de tudo que é coisa que você tem que descartar. Ou seja, sessenta por cento do descarte cotidiano no nosso país é entulho. Era matéria estável que foi transformada em alguma coisa que depois foi destruída e virou entulho. Isso reflete a fúria que nós temos por moderno, por coisas moderna. Você derruba um quarteirão e faz uma torre, depois derruba a torre e faz duas. Uma fúria que se expressa na configuração das nossas metrópoles, que se transformam o tempo inteiro, são orgulhosas de se transformar o tempo inteiro. Elas só produzem descarte, inclusive o descarte humano. Nós descartamos montanhas, florestas, rios e humanos também. Mas eu não queria apavorar vocês hoje de manhã.
É, mas não tem muito jeito, não é mesmo? Nesse momento que a gente está. Mas como você mesmo fala: tentar fazer paraquedas coloridos, para que possamos evitar nossa queda, não é? Para concluir, estamos lançando este primeiro número da Revista Humanos no Congresso Internacional de Educação, que tem como tema esse ano “Ubuntu, eu sou porque nós somos”. O que pensa sobre isso?
Eu sou porque nós somos é uma consciência desperta que produz efeito coletivo. Mas é uma consciência primeiro. Essa consciência desperta tem efeito coletivo. Ela pode nos habilitar a outras experiências além do individualismo, além da ideia meritocrática. Não é o sou porque mereço. É eu sou porque eu pertenço a uma certa ordem natural. De seres, de pessoas que podem compartilhar a vida em estado de pleno contentamento. É assim, é como se a gente tivesse decidido que nós não vamos produzir fúria e carência. Mas que a gente vai experimentar o estado de contentamento e prosperidade. E que isso não tem a ver com a materialidade das coisas. Isso tem a ver com uma disposição mental. É uma atitude.
Ubuntu é uma atitude. É uma disposição mental e alguém poderia dizer também que é uma disposição espiritual. Mas como a palavra espiritual é carregada de ambiguidades, a gente prefere dizer que ela está relacionada com uma disposição afetiva daqueles que emergem de uma cultura que favorece esse tipo de experiência. Porque é preciso que exista um ecossistema cultural pra que essa experiência floresça. Ela não vai florescer na pedra, digamos assim. Na pedra dura. Precisa de algumas gretas na pedra pra ele fazer aquilo que o nosso querido Denilson Baniwa, quando foi convidado pra fazer uma intervenção na montagem de uma exposição na Pinacoteca de São Paulo, que estava sob curadoria da Naine Terena e que teve o nome de Véxoa: Nós sabemos.
Foi esse conceito que abriu para Denílson fazer uma intervenção no calçamento, no estacionamento da Pinacoteca. O Denílson pediu pra tirarem os carros da calçada da Pinacoteca e semeou flores entre os paralelepípedos. E as flores, de diferentes cores e tamanhos, se infiltraram com a chuva e com a água naquelas gretas dos paralelepípedo. E transformaram aquele lugar que era pedra dura em um jardim florido. Aquilo de repente causava uma espécie de cuidado de não enfiar um carro ali naquele lugar. As pessoas falavam: “ah, mas aquilo ali é um jardim”. Então nós podemos criar uma paisagem propícia para comunidades com outra disposição afetiva que não seja a competição, a concorrência e essa espécie de elogio do sucesso individual, da meritocracia.
E como podemos criar esta paisagem?
Que a gente possa viver de uma maneira, digamos, mais verdadeira. Viver de maneira como alguém que despertou para a possibilidade de outros afetos. A ideia que mencionaram dos paraquedas coloridos. Ele só emerge em ambiente propício. Então os paraquedas coloridos são uma poética da existência, de estar no mundo, mas também são uma sugestão de que a gente já tem muita a gente, já temos muitos designs, a gente já tem muito desenho de mundo possível. O que nos falta é saltar.
Eu sou porque nós somos é uma consciência desperta que produz efeito coletivo. Ela pode nos habilitar a outras experiências além do individualismo.
LIVROS DO AUTOR
AILTON KRENAK – ENCONTROS (2015)
Reunindo três décadas de falas, entrevistas e depoimentos, entre 1984 e 2015, o volume em homenagem a Ailton Krenak na coleção encontros foi o primeiro livro a apresentar de forma ampla a trajetória e o pensamento de um dos maiores autores indígenas da atualidade. O livro foi publicado pela Azougue Editorial e tem organização de Sergio Cohn e apresentação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.
AILTON KRENAK – TEMBETÁ (2017)
Tembetá foi a primeira coleção a trazer um panorama do pensamento ameríndio no Brasil. Foram publicados oito volumes, de autores de diferentes povos indígenas, como Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Sônia Guajajara, Jaider Esbell, Kaká Werá, Daniel Munduruku, Álvaro Tukano e Biraci Yawanawá. O volume dedicado a Ailton Krenak traz uma série de entrevistas e depoimentos realizados entre 2015 e 2017, e foi organizado por Idjahure Kadiwel e Sergio Cohn.
IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO (2018)
Um dos maiores best-sellers de 2018, ano em que Ailton Krenak brilhou na sua apresentação na FLIP, a Feira do Livro de Paraty, e se tornou uma das maiores referências do pensamento brasileiro contemporâneo, Ideias para adiar o fim do mundo vendeu dezenas de milhares de exemplares. O livro, editado pela Companhia das Letras, traz três depoimentos contundentes do autor sobre os desafios climáticos e sociais do mundo atual.
A VIDA NÃO É ÚTIL (2020)
Espécie de continuação de Ideias para adiar o fim do mundo, A vida não é útil é novamente um contundente testemunho de desafios e alternativas contemporâneas. Editado pela Companhia das Letras, se tornou também um grande sucesso de vendas, firmando a figura de Ailton Krenak como um dos autores mais importantes na busca de outras formas de vida, que se contraponham à destruição iminente do meio-ambiente e ao utilitarismo capitalista.