Membro da Academia de Ciências da América Latina (ACAL) desde 2016, é editor associado dos periódicos PLoS One, Fron-tiers in Integrative Neuroscience e Frontiers In Psychology – Language Sciences. Integra o Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o steering committee da “Latin American School of Education, Cognitive and Neural Sciences” e o Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat).
Exerceu a função de secretário da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) no triênio 2009-2011 e foi membro do comitê brasileiro do Pew Latin American Fellows Program in the Biomedical Sciences entre 2011 e 2015.
O que te moveu para começar sua trajetória na biologia?
Sempre gostei de mergulhar. Meu pai e meus tios mergulhavam, então isso era uma coisa muito forte pra mim. Eu morava em Brasília… e o que eu queria era ir para o mar, achava muito chato ficar sem mar e queria ir pro mar! Queria morar com a família do meu pai, minha avó, meu tio, que é no Rio de Janeiro. O que eu queria mesmo era ir trabalhar lá com o Jean-Michel Cousteau. Queria mandar uma cartinha para o Jean Cousteau me aceitar na tripulação do Calypso. Minha mãe, preocupada de eu ir embora muito cedo, sugeriu que eu fizesse um estágio em biologia em Brasília para ver se eu gostava. Ela argumentou: você não sabe se gosta de biologia, como é que vai fazer biologia marinha? E aí eu topei, entrei no laboratório, botei um jaleco branco e gostei da profissão. No final da graduação, eu fui mexer com neurociência e só fui voltar para essa ideia de mexer com biologia marinha nos últimos 10 anos, quando comecei a fazer o trabalho atual de pesquisa com polvos. Então foi uma coisa que demorou muito para poder voltar. Eu passei quase todos esses anos pesquisando roedores, seres humanos, outras espécies… pássaros. Mas a biologia foi assim, e aí eu fiz o curso de biologia da UnB, que é maravilhoso. Foi uma experiência incrível.
A biologia é quase que uma filosofia de vida, não é? Quando você começa a estudar biologia, você vê que as coisas têm sistemas complexos. Ela não é uma ciência exata e não é das ciências humanas. É uma coisa que está no meio do caminho, né, que tem muita complexidade…acho que foi por isso que eu quis ficar na biologia… até pensei em fazer antropologia quando estava com 18 anos, mas eu falei: eu quero um negócio que tenha números, que eu possa medir.
A edição zero da Revista Humanos trouxe uma entrevista com Ailton Krenak e um dos principais temas foi o encantamento com a ciência, o conhecimento, o ato de descobrir e de investigar. E ele logo citou um vídeo no qual um sagui pigmeu – um pequeno macaco – investigava um louva-a-deus. Em uma crítica ao antropoceno, ele mencionou que investigar não é restrito ao ser humano, mas inerente a várias espécies. Você fala sobre o conceito também de consciência coletiva, como vê essa questão do encantamento com o conhecimento?
A gente tem muita dificuldade de entender o quanto que nosso comportamento é primata, é mamífero, é vertebrado, é um ser multicelular. A gente faz várias coisas que são propriedades ancestrais e que se expressam na conduta humana, não é? Então, repara, a gente é o produto dessa complexidade. A gente não é só uma camada, nós somos todas as camadas e muitas dessas camadas são reconhecíveis em outros seres, sobretudo no primata. Que são seres extremamente curiosos, são seres de cognição sofisticada.
E boa parte da minha vida eu passei estudando comportamento de rato, estudando hipocampo de rato, córtex cerebral de rato, porque tem um monte de coisas semelhantes, que elucidam, inclusive, que são aspectos tanto da neurofisiologia quanto do comportamento dos seres humanos
Agora… eu pensei que a pergunta ia por um outro caminho… porque o Krenak faz um elogio da ciência e uma crítica da tecnologia muito dura e muito pertinente. Porque quando ele fala em ciência, ele está falando no sentido da cognição, no sentido do acúmulo de saberes. E aí a gente não pode falar em “a” ciência, a gente tem que falar em “as ciências”, né? Porque tem a ciência acadêmica universitária e tem muitas ciências indígenas, muitas ciências de povos originários com seus próprios termos, com suas próprias metáforas. No meu livro mais recente, insisti no argumento de que a ciência acadêmica universitária também é construída em cima de metáforas. São outras metáforas.
Tem uma história de construção dessas metáforas, muito particular. Tem um método que não é adotado por todo mundo, mas que em nome do qual se faz a ciência acadêmica universitária. Mas não é “a” ciência, ela não engloba o saber das outras ciências não são tributárias dela e as outras ciências são sistemáticas, elas têm modelos de explicação do mundo. Eles são testáveis, ainda que o procedimento diante do teste da refutação de hipóteses seja diferente, é o ser humano. Nós somos seres humanos fazendo cognição e é importante compreender isso porque a gente possa ter uma relação mais paritária, menos predatória, né? Com menos apropriação.
Que essa tecnologia não seja tão destrutiva porque existe também, no âmbito das ciências acadêmicas, um elogio da ciência como se ela fosse sempre boa, panaceia para tudo. Quanto mais ciência, melhor, mas ao mesmo tempo que tem cientistas fazendo pesquisa sobre a mudança climática e a regeneração da Amazônia, tem cientistas fazendo pesquisas sobre mais pesticidas. Então a gente tem que entender a articulação da ciência com o capitalismo para separar o joio do trigo, né? Para separar aquilo que vai fazer a humanidade florescer como um todo, daquilo que vai servir para que poucos oprimam muitos.
No seu livro “O Oráculo da Noite”, você fala sobre a questão de abrirmos mão do que chama de “farol probabilístico dos sonhos”, do valor dos sonhos e do cálculo que eles podem nos trazer sobre o futuro. E que isso nos distancia de perceber o mal-estar causado pela opressão que vivemos, como a do patriarcado e do capitalismo. Você pensa que a decolonialidade, que a mudança do paradigma que pode gerar, poderia afetar a nossa visão de ciência?
Muito boa pergunta. O processo colonial transforma as pessoas em ferramentas? O processo colonial gerou a escravidão em larga escala, gerou a diáspora africana, gerou o genocídio indígena e as marcas disso estão presentes agora. Nada disso foi reparado. Não houve, não houve um processo de regeneração. Vence, então boa parte da ciência do que a gente chama de ciência acadêmica universal. É uma ciência que tem uma origem europeia, tem uma origem branca, tem uma origem de linha auxiliar do capitalismo.
E é importante a gente olhar para isso com clareza. Acho que não é o caso de apagarmos o passado. Ele nunca vai ser apagado, é o contrário. É a gente lembrar muito bem do passado, mas tem que entender que a ciência é uma construção social e que, como construção social, ela tem a marca do patriarcado, ela tem a marca do machismo, ela tem a marca do racismo. Você pega os artigos de neurociências de 120 anos atrás, eles são extremamente racistas, frequentemente quando tratam de seres humanos.
Eu me lembro de ler um artigo do início do século 20 em que o cara comparava crânios de homens negros e homens brancos, e
o artigo inteiro mostrava uma equivalência. E chegava no final, ele concluía que era diferente. Então era uma coisa tão ideológica que ele é contra os próprios dados.
E aí vale a gente lembrar, como na sua pergunta, que nesse sistema não tem espaço para o sono, nem espaço para os sonhos e que nesse sistema, quando a pessoa sonha, ela só sonha com o próprio umbigo, só sonha com seus próprios probleminhas, só sonha com a sua, com seu desejo de mercadorias. Lembrando um pouco das palavras do Davi Kopenawa, Yanomami: uma sociedade estruturada em termos de projeção do desejo em objetos.
Então está todo mundo projetando a felicidade na aquisição de coisas. Os que têm muito, tem bem mais do que os que tem pouco, dos que não tem nada. Mas tá todo mundo nessa, quase todo mundo nessa, isso gera muita infelicidade. Gera infelicidade em todo o mundo, gera infelicidade em quem não tem e gera infelicidade em quem tem, mas queria ter mais. Essa comparação entre as pessoas que o capitalismo estimula vai matando o sonho coletivo, vai matando a noção de que nós somos um grupo de que nós precisamos uns dos outros, de que quando você sonha com o seu desejo, seu desejo tem que estar em relação com os desejos das outras pessoas, né?
Aproveito para recomendar o livro recente da Hanna Limulja, “O Desejo dos Outros – uma etnografia dos sonhos Yanomami”. Porque sonhar com o próprio umbigo, com os próprios desejos já é raro na nossa sociedade, mas é pouco. É muito pouco, é uma pálida sombra do que são os sonhos numa comunidade. Os sonhos têm a ver com o posicionamento do desejo do indivíduo em relação aos desejos dos outros, que não são só seres humanos, que são também animais, que são também entidades.
Quanto mais ciência, melhor, mas ao mesmo tempo que tem cientistas fazendo pesquisa sobre a mudança climática e a regeneração da Amazônia, tem cientistas fazendo pesquisas sobre mais pesticidas.”
A gente está vivendo em um massacre dessa experiência. Essa experiência está completamente achatada e está todo mundo projetado para fora nesse desejo insaciável por objetos, por consumo de coisas e nessa entrega quase que completa ao audiovisual. Isso a gente vê claramente nos nossos filhos, nossos netos, nossos sobrinhos. Se você deixar as crianças de hoje em dia, ficam das 6 da manhã às 10 da noite, vendo tela.
É preocupante, não é? Porque é uma interrupção de um ciclo, de ida e vinda, via de mão dupla, que é o diálogo com a comunidade, que é o contato social. Na tela você está só recebendo tudo aquilo, né? Quase que uma hipnose. Isso vai separando as pessoas. As pessoas estão todas espalhadas, fragmentadas, com laços cada vez mais tênues. É muito preocupante.
No seu livro “Sonho Manifesto”, você fala sobre essa questão de não apagar o passado. Comentando a herança que a gente deve dei-xar para trás e a herança que a gente tem que honrar. E aí cita a capoeira, os mestres, a herança cultural que a gente deve carregar, as práticas que dialogam coletivamente com o nosso povo. Como os saberes culturais e a nossa ancestralidade dialogam com a divulga-ção científica? O que que isso tem a ver com todo esse movimento que a gente vem carregando nas ciências?
Eu acho que infelizmente impacta pouco, tem que impactar muito mais. Me lembro de uma experiência, de alguns anos atrás. Eu frequentei as reuniões da SBPC quando eu era bem jovem, depois eu me afastei e fui fazer pós-graduação. Fui para fora do país, voltei, fui montar meu laboratório, e me tornei diretor. Eu acompanhava SBPC de longe, com toda a simpatia do mundo. Mas eu não estava mais participando da vida da SBPC. E aí, em algum momento fui convocado pelos colegas. Fui e acabei sendo eleito para a diretoria.
Então, integrei 2 diretorias e atualmente estou integrando o conselho, então passei a fazer parte da vida da SBPC com bastante vigor. Na primeira reunião a qual eu fui, que era para tomar posse como diretor, fui fazer um minicurso, desses que são bem famosos, que são extensão, que fazem divulgação científica, pois são para um trabalho cultural mais amplo.
E eu fui participar de um encontro lá em Belo Horizonte, na UFMG. Aí tinha um curso de capoeira Angola, dado por um mestre maravilhoso que é o Mestre João Angoleiro, de Belo Horizonte, e pela contramestra Flávia. Eu fui fazer esse curso e cheguei lá e não tinha a menor estrutura para o mestre dar a aula. Porque ele foi tratado como um professor. Não tinha café da manhã, não tinha transporte, não tinha nada. Presumiram que ele ia pegar o carrinho dele, dirigir lá e dar a aula dele de graça. Só que não. Ele mora na periferia, ele não tinha nem tomado café! Um homem negro, um homem que tem na sua expressão corporal, na maneira como ele se veste, em tudo que ele faz, no jeito como ele se alimenta, uma matriz africana muito explícita e a universidade não sabia lidar com isso. Ele estava, na verdade, desassistido. E aí eu fui, me coloquei a serviço e tal, e depois a gente conseguiu. Eu levei isso para a diretoria e a diretoria foi super sensível, e o conselho também. Fizemos uma outra atividade com ele um ano depois, com os 2, com ele e com a Mestra Flávia, que é uma incrível professora de dança afro, além de ser uma capoeirista incrível. Mas eu estou trazendo esse caso para dizer que existe muito pouco.
A gente tem que que andar muito ainda, caminhar muito para que a ciência acadêmica universitária compreenda a necessidade de paridade, de um olhar respeitoso, paritário, para essas outras ciências. Existem muito mais semelhanças do que diferenças, né? Muitos dos princípios que a gente aplica dentro de um laboratório fazendo pesquisas são princípios da roda da capoeira. A roda da capoeira tem pilares muito semelhantes. Existe uma objetividade da ciência. Você faz um experimento esperando um resultado X e dá o contrário… você fez 10 vezes, deu sempre o contrário, é isso? Então os fatos falam mais do que eu desejo.
Eu acho que a divulgação científica feita por brasileiros e brasileiras, no Brasil e no exterior só tem a ganhar, só tem a crescer, se tiver aberta para capoeira, pro Candomblé, para a Jurema, para o jongo. Vai crescer, não vai diminuir, vai aumentar. Igual quando eu estava nos Estados Unidos, onde todo ano tinha reunião da sociedade estadunidense de neurociências, e eu levava atabaque, levava berimbau, fazia roda dentro do centro de convenções de Atlanta, de Chicago, de Washington, vinha polícia, a gente enrolava a polícia continuava.
A gente tem que falar do Sol,
das estrelas, das algas, do oceano. A gente tem que falar do encantamento pela natureza.
Mas para que isso aconteça, a bolsa tem que ser paga em dia.”
E fazemos isso no Brasil também. E as pessoas falam, pô, mas não tem nada a ver, falou cara. Tem tudo a ver. Não é? Até porque tem. Tem a ver, inclusive, do ponto de vista do desempenho, porque é uma pessoa que está fazendo isso. É alongamento e exercícios aeróbicos é entre 2 palestras, vai aprender muito melhor, vai estar muito mais aberta ao conhecimento. O cérebro dela vai estar oxigenado, pré-frontal vai estar ativado, ela vai ter funções executivas para poder aprender melhor e fazer um controle inibitório dos impulsos. Então, tem uma série de coisas interessantes para esse diálogo. Eu me lembro, por exemplo, do trabalho do Walter Fernandes, que é o mestre curumim. É um mestre aqui do Rio de Janeiro. Estou no Rio agora.
Eu sempre falava que com as habilidades que tinha, devia fazer pós-graduação. Ele topou, fez o mestrado e agora está terminando o doutorado aqui na UFRJ. Eu sou coorientador dele pesquisando capoeira, em como intervenção da capoeira dentro da escola para melhorar o desempenho acadêmico, porque também melhora as habilidades socioemocionais, melhora a coordenação motora que, por sua vez, tem a ver com a coordenação da fala. É, então quem faz esse tipo de prática? Tem uma série de benefícios e vice-versa. Você pode usar e trazer para dentro da capoeira uma série de conhecimentos da ciência acadêmica universitária, da própria educação física, né? Da fisiologia, da anatomia. Então esse diálogo, ele, ele tem que ser fortalecido.
Para que chegue a mais pessoas, porque se não, a ciência continua falando para os convertidos, falando para dentro das suas paredes, não é? E a gente viu o que aconteceu nos últimos 4 anos. Foi uma tentativa de destruir completamente a ciência Brasileira. Na verdade, a cultura como um todo, né? E em alguns aspectos, foi muito bem-sucedida, foi laboratórios foram destruídos, é… departamentos, foram esvaziados, pessoas foram embora do Brasil para poder fazer ciência ou ficaram no Brasil, deixando a ciência. Tá cheio de doutor aí dirigindo Uber.
Mas não conseguiram nos destruir, a gente conseguiu sobreviver. Só que a gente tem que fortalecer. É a ciência. Na sua ligação com o povo, por quê? Por que que a maior parte da população Brasileira não se interessa por ciência? Porque não tem linguagem comum, porque não tem uma divulgação científica que chega a essas pessoas de uma maneira que faça sentido. É um pouco a discussão feita pelo Paulo Freire há 50 anos. Você vai fazer um processo de alfabetização trabalhando com conceitos e com modelos que não dizem respeito à vida das pessoas. Isso não vai ter eficácia. Então, para ter eficácia, tem que ser aproxima da realidade de vida das pessoas.
E aí tem que lembrar que mesmo esses saberes de matriz afro–indígena que são de origem popular, muitas vezes eles são um luxo para o povo, que o povo também já não tem acesso. Muitas vezes tem capoeira para quem é da classe média, é branca e não tem capoeira na favela. Tem que lembrar disso também, né? Não, não é pelo fato de ter uma origem popular que isso é popular. E essa mistura de cultura popular, consciência. Ela dá muito certo quando eu faço eventos em que eu levo o meu berimbau, por exemplo, para começar a palestra. Isso mobiliza a atenção muito mais. Eu posso utilizar esse instrumento, que é um instrumento, né, ancestral, sagrado, tanto na matriz africana quanto na matriz indígena para facilitar um diálogo sobre a ciência acadêmica universitária, isso é bem-vindo. A gente precisa fazer isso. O Brasil está mais do que talvez qualquer outro lugar bem-posicionado para fazer isso.
A cultura oral, como na tradição dos Griôs, como nos povos indígenas, é uma coisa que não se passa tanto na academia. A academia tem toda uma produtividade de artigos científicos, com um foco na escrita. Como se daria uma possível integração com a cultura oral, com os saberes populares? E isso influencia os sonhos?
Muito legal essa pergunta. Eu acho interessante olhar para isso. Os artigos científicos, os livros, textos. São uma codificação do saber que raramente passa por um causo, por uma narrativa, por uma história, pela experiência do indivíduo. Não em geral, mas sobretudo nas áreas biomédicas e das ciências exatas. Na cultura oral é tudo muito pessoal, são histórias, são personagens, são narrativas exemplares. Só que na formação de cientistas, essas narrativas têm um lugar central. Quando eu estou em diálogo com minhas alunas, meus alunos de iniciação, mestrado, doutorado, estou o tempo todo falando para eles dos meus mestres, das minhas mestras. Eu estou falando: olha, o meu avô científico, Isaac Roitman, que foi meu pai científico, a Loreny Gimenez Giugliano, que foi minha mãe científica, faziam assim, contava assim. O Marcão, Marco Marcondes de Moura, que foi meu primeiro guru de neurociência, falava isso, contava essa piada aí… Teve essa história aí… Aí eu conto coisas minhas, coisas engraçadas…
São essas histórias que não entram nos livros, textos que não estão publicados nos artigos, que na verdade, são a pavimentação da formação dos jovens cientistas. Porque você conta, você fala: Olha, não faz assim porque uma vez eu fiz assim, aconteceu isso. Não liga no equipamento do 110, no 220 que vai explodir. Eu já fiz isso. E essa oralidade é necessária para a formação de jovens em qualquer lugar. Considerando jovem como uma pessoa que está jovem naquilo, pode ser uma pessoa de 70 anos.
E aí entra a discussão dos sonhos. Porque não é um hábito de ninguém, nem no ambiente de trabalho, nem no ambiente escolar, nem nos laboratórios, perguntar o que que as pessoas sonharam, mas devia ser porque frequentemente as soluções para os problemas que estão sendo tratados estão vindo ali, ainda que disfarçados, ainda que metaforicamente, alegoricamente.
Como que você tem visto as iniciativas de divulgação após esses últimos 4 anos em que vivemos no Brasil um desmonte da ciência, vivemos a pandemia, o negacionismo. O que acha que precisa ser feito?
Olha, os últimos 4 anos foram anos de sobrevivência, de resistência. Foram anos em que a academia se mobilizou, foi para a rua. A gente teve que se mobilizar mês a mês para garantir a bolsa do mês seguinte, da pós-graduação. Então era uma insegurança muito grande, né? Vamos chamar inclusive, pelo nome: insegurança jurídica. A pessoa não sabe se tem como pagar o aluguel do mês seguinte e não sabem se aquele contrato que ela assinou vale. Então, a divulgação científica, eu acho que foi muito essencial como sendo uma forma de dizer para a sociedade como um todo que a ciência não é uma pauta setorial.
A ciência não é uma pauta de cientistas, a ciência é uma pauta de todo mundo. O motorista do Uber que está lá com o seu aplicativo, ele precisa de ciência. E quando a gente traz essa discussão, geralmente as pessoas se tocam. E não é difícil chegar nessa conclusão com as pessoas, porque de fato elas estão utilizando ferramentas tecnológicas para sua própria sobrevivência. Mas foi muito difícil nos últimos anos fazer um chamamento, uma convocação para ser cientista, para ingressar nessa carreira. Por que você vai prometer o quê para pessoa? Basicamente, sofrimento, escassez e luta, né? Não é, digamos assim, o repertório mais atraente. Agora a gente não pode deixar que a divulgação científica se resuma a isso. Ela tem que continuar tendo o poder de encantar as pessoas e de fazer mudanças mais profundas na sociedade, inclusive nessa perspectiva decolonial. Eu acho que, por exemplo, quando a SBPC deu o prêmio José Reis para o Alan Alves Brito, que é um astrofísico negro e gay, é uma clara opção feita por uma academia, que se você for olhar, todo mundo ou quase todo mundo é branco. E que tem pouquíssimos negros na sua diretoria ou no conselho, mas que tem a consciência de que isso precisa mudar. Então, o que a gente tem que buscar é ver que tem pessoas negras, que existem mulheres, que existem indígenas, que existem pessoas que não são apenas heterossexuais que estão fazendo ciência boa e fazendo divulgação científica boa.
Eu mencionei o Alan e poderia mencionar outras pessoas. A questão é que é preciso fazer uma busca ativa que volte a falar daquilo que mais interessa, porque a luta é importante, mas a gente tem que ir além da luta. A gente tem que falar do Sol, das estrelas, das algas, do oceano. A gente tem que falar do encantamento pela natureza. Mas para que isso aconteça, a bolsa tem que ser paga em dia. As pessoas não podem ter incertezas sobre isso.
Desde que houve o golpe contra Dilma Rousseff, a gente entrou numa discussão paupérrima sobre cultura, educação, ciência e saúde do Brasil. Horrível. Que é basicamente ficar discutindo o que que a gente vai cortar no mês que vem. Os últimos anos foram anos de redução massiva dos recursos para as universidades, para os institutos, isso torna tudo muito dramático e coloca irmãos contra irmãos. Coloca as pessoas numa situação de escassez muito difícil. E espero que isso mude agora que a gente está num outro momento, considerando quem está no Ministério da Saúde, quem está no Ministério da Ciência, Tecnologia, quem está no MEC, quem está no Ministério dos Direitos Humanos, dos povos originários, da ministra Anielle Franco, a ministra Luciana Santos. A gente tem um super time de mulheres e homens comprometidas e comprometidos com o Brasil e com a construção do que realmente interessa.
E o que realmente interessa é o investimento na cultura, no sentido mais amplo, considerando a ciência dentro disso. E investimento nos jovens. E esse governo tem muita clareza disso, é evidente. Se vai conseguir fazer depende de todo mundo. Depende porque o Bolsonaro foi derrotado, mas ele está aí. Ele está aí abaixo da superfície, mas é um monstro gigantesco abaixo da superfície, um monstro de desinformação, um monstro de desrespeito profundo com os povos originários. Profundo. Então a gente tem 4 anos para construir um outro caminho, para que daqui há 4 anos a gente não esteja entre 51% e 49%… porque isso é um absurdo. A gente não pode voltar para esse lugar. E isso só poderá ser construído com novos laços de solidariedade que passam por construção de cultura, de envolvimento das pessoas com a cultura, com a sua própria cultura.
Esse boom de fake news que vivemos nos últimos anos colabo-raram para formar uma Torre de Babel, onde uma pessoa fala uma coisa, outra entende outra, formando “bolhas”, onde não há diálogo. São formadas múltiplas histórias quase como se fossem universos diferentes. Multiversos. Dentro disto, como que ficaram os sonhos? Existem sonhos coletivos? Esses sonhos coletivos ficam partidos por terem “bolhas”? Como a desinformação – essa Torre de Babel – mexe com os nossos sonhos?
Isso está estilhaçando sonhos, está matando os sonhos. Essa experiência do sonho coletivo. Ela acontece com uma frequência alta em certas comunidades em que as pessoas estão muito integradas, em que a vida acontece numa relação muito mais íntima da vida comunitária. Por exemplo, entre os Wiwá, lá do norte da Colômbia, encostando na Venezuela, aquela região perto da Serra Nevada. Eles têm frequentemente sonhos compartilhados. E você? É biológico isso… pessoas que estão em vivendo em comunidade acopladas e com desejos semelhantes, necessidades semelhantes, podem produzir probabilisticamente simulações de futuros semelhantes. É uma visão. Não estou dizendo que é isso. A gente sabe tão pouco… É uma interpretação possível para esse fenômeno. O fato é que é um fenômeno. Ele acontece. E isso aconteceu na pandemia. Um monte de gente teve sonhos semelhantes no planeta.
“A ciência não é uma pauta de cientistas, a ciência é uma pauta de todo mundo. O motorista do Uber que está lá com o seu aplicativo, ele precisa de ciência. E quando a gente traz essa discussão, geralmente as pessoas se tocam.”
Por quê? Uma possível explicação é que todos estivemos submetidos às mesmas pressões, de certa forma. E nesse mundo em que existem muitos universos paralelos, esse multiverso de opiniões, pontos de vista e de verdades constituídas para grupos enormes que são muito difíceis de serem alteradas de fora, elas só podem ser alteradas por dentro. Não é? Não dá para fazer um debate. Com os evangélicos, se não for nos termos dos evangélicos, eles não vão engajar. Então como é que faz? Eu vejo muito o pastor Henrique Vieira fazendo esse trabalho, engajando politicamente o público evangélico, utilizando as escrituras, utilizando o evangelho dentro daquelas premissas.
Então eu acho que o problema do sonho é que ele não tem lugar no mundo social. Ele não é necessário para nada, ele não é demandado para nada. E aí ele começa a parecer cada vez mais uma perda de tempo. As pessoas têm um comportamento diante do sono, dos sonhos, muito utilitário, muito utilitarista, muito capitalista. Quer dizer, elas querem estar livres para trabalhar mais, entregar mais trabalho para o sistema ou para descansar e para relaxar.
Essa discussão sobre o papel dos sonhos na construção da sociedade está praticamente erradicada. A gente não tem isso. Eu não vejo essa discussão acontecer no âmbito de nenhum governo de estado nacional. Não vi isso acontecer até hoje. Talvez no Butão, que é o país que promove a felicidade ao invés do crescimento do PIB. E acho que a gente precisa realmente de, nesse sentido, de bater a cabeça no chão, entendeu? E conversar com quem entende disso.
Outro dia tive um encontro com o Ailton Krenak em Fortaleza. Eles me pediram para falar sobre sonhos. Eu falei das coisas que a gente faz no laboratório. Ele falou: não, esse negócio de sonho no laboratório… você quer saber como é que é sonho de verdade? Vamos lá no Xavante. Eles pegam os meninos jovens, levam para o meio do Mato… só tem guerreiros ali. Colocam eles lá e fazem eles construírem uma choupana. Eles ficam lá e, de noite, os guerreiros vão e assustam eles. Deixam eles no limite e depois falam: agora sonha. Aí o cara sonha, sonha pra caramba, sonha muito mais. Então tem uma construção do sonho. O sonho é motivado socialmente, ele é buscado socialmente, é valorizado. E quando que a gente tem isso na nossa sociedade? Nunca. Quando a pessoa consegue se lembrar de um sonho e vai contar para alguém, ninguém quer ouvir. Esse sonho que a gente está falando que é compartilhado, ele também é o sonho a favor da coletividade.
Você fala muito sobre a capacidade de adaptação e colaboração nessa questão do homem ser. Um animal capaz de colaborar com várias outras espécies. Disse de ter essa relação da colaboração. Eu queria saber como que você vê as nossas chances atuais, assim como humanidade, de lidar com a cooperação e a competição? Você acha que a gente consegue entrar nesse olhar mais cooperativo do que competitivo que a gente tanto vive hoje?
A gente precisa. Se a gente vai conseguir? Tem os pessimistas e os otimistas, né? O Ailton Krenak acha que talvez. Eu converso com Ailton. Se vai rolar? Não deveria rolar, mas eu estou mais do outro lado ainda. Quer dizer, eu sempre renovo as minhas esperanças de que a gente vai dar conta. As pressões de seleção mudaram. Tenho falado bastante sobre isso recentemente. Como não havia comida para todo mundo no planeta, havia uma pressão de seleção forte dada pela escassez que, de alguma maneira, favorecia a competição. Agora, isso não existe quando a gente olha para o todo do planeta. Mas se a gente olha regionalmente, essas expressões estão todas lá porque existe um acúmulo muito grande de recursos na mão de poucas pessoas.
“Essa discussão sobre o papel dos sonhos na construção da sociedade está praticamente erradicada. A gente não tem isso. Eu não vejo essa discussão acontecer no âmbito de nenhum governo de estado nacional.”
Então acho que a pergunta fundamental aqui é: quanto tempo vai levar para que nós, como grupo, como população planetária chegarmos a estratégias mais adaptativas. A estratégia adaptativa na abundância é a partilha. Por que você vai entrar em conflito potencialmente letal se não há escassez? E por que que não existe essa partilha? Porque aqueles que têm mais continuam imbuídos da inércia da competição. Por que que o Elon Musk não relaxa? Por que que ele não curte o que ele tem? Por que que ele está sempre lutando para alguma coisa mais acontecer? Porque ele está na inércia dopaminérgica, insaciável, de mais, mais, mais… nunca está bom. E nesse acúmulo de recursos ele está prejudicando bilhões de pessoas. Não é um acúmulo só de recursos materiais, tem um acúmulo do poder decisório. Porque um punhado de pessoas tem quase todo o poder decisório do planeta. Isso claramente é uma distorção de um tipo de comportamento que lá no paleolítico fazia sentido. Você está num clã em que todo mundo é parente e tem pouca comida. O que você faz? Aumenta a solidariedade dentro do grupo e compete com quem está fora.
O problema é que a gente está hoje numa situação de muita abundância. Mas as pessoas mais poderosas estão enxergando como missão de vida engolir os mais fracos. Isso vai dar errado. Isso está dando errado. E é interessante porque dá errado para todo mundo. Dá errado para eles também. As pessoas mais ricas do planeta têm muita dificuldade de comer comida sem plástico, sem agrotóxico. É, elas também estão submetidas a isso. Elas também estão submetidas a um mar poluído. Elas também estão submetidas ao buraco da camada de ozônio. Então a gente está vivendo uma situação que está inviabilizando a espécie humana. Claro, inviabiliza primeiro a vida dos mais vulneráveis, mas em algum momento inviabiliza para todo mundo.
Se por um lado o vício em telas é uma doença, na qual as pessoas ficam completamente envolvidas, a internet também se torna um lugar de divulgar coisas boas, de ser um lugar de encontros. Você pensa que isto também poderia ser utilizado para um lado bom?
A internet é uma coisa maravilhosa. Imagine que você está no meio da rua e tem uma dúvida, você vai lá e fala perto de você, tem respostas instantâneas, são pelo coletivo. A Internet é a possibilidade que a gente tem de construir uma consciência planetária. A gente precisa de decisões planetárias, aquilo que acontece na China impacta o Brasil. A gente precisa de uma consciência de espécie que transcenda a espécie, que entenda Gaia, que entenda o sistema.
Isso não era possível sem internet. Nós éramos reféns de uma série de poderes constituídos, inclusive o poder da mídia, que está altamente concentrado agora. A internet não é a solução mágica, porque está sujeita a todo tipo de exclusão, de opressão e de concentração de poder que estão as outras esferas da organização social. Então a internet é uma ferramenta poderosa de transformação que pode tanto apressar o nosso fim quanto nos salvar.
Agora a gente vai ter que usá-la muito bem. Não é a mídia que tem que ser regulada. A internet e as outras mídias precisam de regulação? O PT passou anos dizendo isso e tomando bomba de todo tipo de veículo de comunicação. E agora? As pessoas estão começando a se dar conta de que, sem essa regulação, a gente vai entrar na Torre de Babel da mentira da, da manipulação mais vil? Já entramos, já passamos por isso, né? O que foi essa campanha eleitoral? Coisa mais torpe, mais absurda. E a gente precisa olhar para isso com, com olhar de sétima geração depois de nós, a gente tem que olhar nas consequências do que está acontecendo agora. Eu não sou de forma alguma contra. A internet ou as telas no individual? Até porque me considero como todo mundo mais dependente delas atualmente, né? É o que é um pouco a discussão das drogas. Todo mundo precisa de drogas. A gente nem falou sobre isso, né?
Por aí agora o problema é o uso problemático, é o abuso, é o excesso. É a gente não saber dosar, né? Aí novamente tem uma questão de quantidade, tem uma questão de qualidade. A gente precisa de curadoria, a gente precisa de selecionar muito bem aquilo que a gente dissemina planetariamente. Isso hoje em dia não acontece. E é uma discussão difícil, porque ela esbarra nos limites do que é censura. É uma discussão, não é simples. Se ela fosse simples, a gente já tinha resolvido, e a gente vai precisar de muita maturidade novamente. A gente vai precisar de saber e de sabedoria que estão acumulados. Fora do capitalismo e fora da ciência acadêmica universitária, a bússola moral vai ter que ser buscada nesses outros saberes.
OBRAS DO AUTOR
LIMIAR: CIÊNCIA E VIDA CONTEMPORÂNEA (2015)
Reunião de escritos e reflexões sobre sonhos, drogas, religião, neurociência, política, meio ambiente e educação.
SONHO MANIFESTO: DEZ EXERCÍCIOS URGENTES DE OPTIMISMO APOCALÍPTICO
Mantido o rumo atual da vida na Terra, o futuro é impossível. Neste livro o autor compartilha conhecimentos de cientistas, pajés, xamãs, mestras e mestres de saber popular, artistas e inventores que nos lembram da importância de sonhar coletivamente com o futuro do planeta.
O ORÁCULO DA NOITE: A HISTÓRIA E A CIÊNCIA DO SONHO
A partir de informações históricas, antropológicas, psicanalíticas e literárias, além das referências mais atualizadas da biologia molecular, da neurofisiologia e da medicina, o neurocientista compõe uma narrativa instigante sobre a ciência e a história do sonho.