O
reconhecimento de que alguns sujeitos estão sistematicamente ausentes de alguns espaços (não raro, de poder) têm dado visibilidade à questão da inclusão. Reconhecer é importantíssimo. Mas desafios ainda maiores estão na implementação de iniciativas para mitigar dificuldades estruturais que levam à exclusão. Cabe lembrar que o valor da diversidade tem uma ascensão recente e não suficientemente sólida: nem todos reconhecem a ideia básica de que temos mais força para enfrentamento de problemas se temos representantes e pensamentos diversos em espaços de influência.
Os valores indissociáveis acima formam a sigla EDI (Equidade, Diversidade e Inclusão), que têm pautado de artigos científicos a missões de organizações. Integram também o exercício de uma democracia plena, com conquistas recentes que vão de cotas no ensino superior a programas de transferência de renda. Um olhar um pouquinho mais próximo, contudo, vai concluir sem muita dificuldade que a implementação de valores de EDI não se resume a programas específicos. Alguns espaços são altamente resistentes à inclusão, mesmo com políticas em curso: são necessários estudos profundos, diretrizes, diálogos e ferramentas.
Um desses ambientes difíceis de adentrar e historicamente excludentes é a ciência. O acúmulo de conhecimento necessário para estar nesse espaço demanda tempo, investimento, e acesso a muitos recursos. Começa, ainda, muito antes. Depende da construção de um imaginário social de que não só é possível, mas desejável, que cidadãos diversos estejam nesse espaço. Por isso, foi criado em 2023 o LABinCC (Laboratório de Inclusão na Comunicação e na Ciência) na Universidade Estadual de Campinas, decorrente de projeto financiado pela Fapesp. O laboratório pensa e produz ferramentas de inclusão em ambas as áreas. No laboratório, a inclusão tem dois eixos: 1) comunicação: a garantia de que todos tenham acesso ao conhecimento bruto, mas também contextualizado e ‘traduzido’ da ciência; e 2) participação: garantir que diversos sujeitos consigam produzir ou participar da produção da ciência.
O LABinCC entende que a inclusão na ciência é particularmente intrincada e requer um esforço de múltiplos atores, em uma espiral de cultura científica pautado pela ciência aberta e com atores permeáveis uns aos outros (e à sociedade). Estamos falando de um campo que se constituiu como relativamente autônomo, em muitos casos apartado da linguagem e do conhecimento corrente na sociedade com métodos, ferramentas, conceitos e ideias muito próprios. A literatura identifica a ciência como tendo feito um trabalho histórico de “fronteira” – conceito conhecido em inglês como – boundary work. Agora, está difícil derrubar o muro.
A IDEIA DE UMA CIÊNCIA CIDADÃ E ABERTA
Para ilustrar esse ponto, não é preciso ir muito longe no argumento: a ciência possui meios de comunicação específicos que historicamente não circulavam para quem não está no meio. O cientista, não raro financiado com recursos públicos, faz sua pesquisa e publica sua pergunta, suas hipóteses, seus métodos e resultados em revistas científicas cujo acesso muitas vezes é pago ou em bancos de dados pouco divulgados ou conhecidos. Contraditoriamente, a sociedade que financiou a ciência sequer consegue ter acesso a esses dados; ou, para acessar, terá que pagar uma segunda vez.
Iniciativas têm tentado mudar esse cenário. O movimento de ciência aberta, a comunicação pública da ciência e projetos de pesquisa que incluem participação pública — conhecidos como de ciência cidadã —são algumas das áreas com esforços concretos nesse sentido. Iniciativa relevante é o SciELO (Scientific Electronic Library), um banco de artigos científicos de acesso gratuito criado no Brasil, é uma iniciativa pioneira no mundo. Em 2019, armazenava 700 mil artigos científicos. O SciELO deve ser usado e acessado por todos. Não só cientistas.
“Há pelo menos 20 anos, o movimento de acesso aberto (gratuito) a publicações científicas existe, porém, ele tem ficado dentro dos muros das universidades e instituições de pesquisa. O acesso a esse conhecimento em si não basta porque não garante sua compreensão e uso. Por isso, temos trabalhado com perspectivas mais interdisciplinares e intersetoriais para a promover a democratização da ciência por meio de esforços de divulgação científica”, explica Germana Barata, pesquisadora da Unicamp e coordenadora do LABinCC. “A ciência aberta hoje é uma construção coletiva, que começa com o acesso gratuito a artigos científicos, passa pela comunicação pública da ciência, e chega na participação de cidadãos no conhecimento”, conclui a pesquisadora.
NOSSOS ESFORÇOS NA INCLUSÃO
Embora o espaço da ciência tenha um caminho longo para ser inclusivo, há parceiros e a pandemia trouxe momentum para que esse debate siga adiante. O LABinCC identificou, em textos que circularam na pandemia no Brasil, que houve uma demanda de 70% para que a ciência seja mais inclusiva e que envolva o público. Estudos no laboratório indicam que, embora haja receio que materiais de ciência sejam distorcidos levando à desinformação, esse medo está restrito a algumas áreas específicas, como a da saúde. Ainda, o “vazamento de informações” da ciência ocorre de qualquer maneira em uma sociedade midiatizada. Qualquer checagem fica ainda mais difícil se não há acesso a dados, artigos científicos ou textos de divulgação da ciência.
Não podemos deixar de mencionar que a inclusão na ciência no Brasil convive com problemas históricos, com déficits sociais e de renda importantes, além do fato de que sujeitos com determinadas características tiveram menos acesso a recursos e espaços de influência. Se são negros ou indígenas, se são mulheres, se são LGBTQIA+, se são pessoas com deficiência e se são pobres, a probabilidade de não estarem em alguns espaços é maior. Ainda, há aqueles que possuem essas características combinadas. Teóricos têm chamado esse fator de perspectiva interseccional, em que a exclusão é formada por um feixe complexo de vários eixos de subordinação. Para isso, em seus estudos, o LABinCC também tem trabalhado para que haja visibilidade de alguns dados na ciência para entendermos quem faz ciência, e quem está divulgado.
Ainda, estamos desenvolvendo indicações para que materiais de divulgação de ciência, alguns deles voltados para jornalistas e formadores de opinião, cheguem ao público e estejam voltados para a inclusão na ciência. Esses materiais podem ser a porta de entrada para que cidadãos acessem o conhecimento científico. Isso se esses textos contextualizarem, se traduzirem, e se divulgarem os links de artigos científicos em acesso aberto. Estamos fazendo uma pequena parcela de algo que demanda um esforço certamente muito maior. Não à toa a inclusão na ciência requer um esforço conjunto não só da comunidade científica, mas de formuladores de políticas, movimentos sociais, comunicadores, e de toda a sociedade — como o Sesc, que nos cedeu esse espaço.
QUEM É A AUTORA?
Monique Oliveira é doutora em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestra em Divulgação Científica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Monique é bacharela em Ciências Sociais pela USP e em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). É pós-doutoranda no LABinCC/Labjor/Voices (Unicamp) e tem particular interesse na inserção da ciência no mundo dos valores e na democracia, com ênfase nas áreas de ciência cidadã, no mapeamento de controvérsias científicas e em Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia. Também tem mais de 10 anos de atuação no jornalismo científico e quatro prêmios na área. Trabalhou nas redações do Estadão, da Revista ISTOÉ, da Folha de S.Paulo e do G1. Na gestão de 2023-2024, é uma das diretoras da RedeComCiência (Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência) e mantem o site www.moniqueoliveira.org.