“Quando era criança, sentia que algo estava errado na cidade do Rio de Janeiro, não sabia dizer o que, mas ser a única criança negra em todos os ambientes que frequentava soava estranho”.
A história brasileira contada nos livros “foi escrita pela mão do colonizador”, já dizia Beatriz Nascimento. Aprender na escola que meus antepassados foram escravos e que tudo relacionado à cor da minha pele não tinha valor me dava uma sensação ruim. Sentia que a história brasileira estava tão incompleta quanto a minha história familiar. Não tinha imagem, não sabia o nome dos meus antepassados e muito menos informação de qual lugar da África eles poderiam ter vindo, de onde eu descendia também.
Os estereótipos relacionados à cultura negra e às desigualdades raciais eram alarmantes. Durante o Fórum Social Mundial em 2003 em Porto Alegre, conheci um líder quilombola da Comunidade Kalunga, que fica em Goiás. Para mim, foi um espanto saber que ainda existiam comunidades quilombolas no Brasil, pois tudo o que tinha aprendido sobre comunidades quilombolas estava no imaginário de “lugares isolados de negros fugidos”. Nesse mesmo ano conheci a comunidade do Quilombo São José, localizado em Valença, Rio de Janeiro. Nada do que estava vendo e vivendo na comunidade tinha aprendido na escola como a Festa dos Pretos Velhos e o Jongo. Conheci sobre a cultura Jongueira do Sudeste e diversas comunidades que estavam presentes lá. Esse encontro foi um divisor de águas na minha vida, pois a partir daí entendi o quanto a história do Brasil excluía a maioria da população.
Durante o Mestrado em Memória Social, pesquisando o Turismo Étnico na comunidade do Quilombo do Campinho da Independência em Paraty, fui chamada para dar aula no Senac no curso de guia de turismo e tínhamos que simular uma viagem completa em Paraty. No currículo do curso, o roteiro turístico constava a visita ao centro histórico de Paraty, abordando a história colonial da cidade e as visitas aos alambiques. Sugeri que visitássemos a comunidade do quilombo do Campinho da Independência e ouvíssemos a história contada pela própria comunidade local, já que essa história não estava contada nos livros. Foi uma grande surpresa para os alunos que não esperavam esse tipo de vivência e de como essa visita impactou não só alunos pretos, mas a todos.
Há dez anos atrás, surgiu a Conectando Territórios, uma agência de turismo com o propósito de aproximar pessoas da história brasileira não contada nos livros, mas sim pela voz das comunidades locais, de diversos territórios, como comunidades quilombolas e urbanas no Rio de Janeiro. Oferecemos aulas fora de sala de aula em lugares de memória como a Pequena África, e a história encoberta da escravidão por mais de um século, onde se encontra o Cais do Valongo. Essa região traz uma importância histórica muito grande para nossa cidade, e estamos falando somente da história de dor e sim de toda potência, toda a luta, tecnologia e valorização de africanos e seus descendentes na história do Rio de Janeiro. Recebemos turistas e universidades estrangeiras, escolas e, desde 2020 em diante, mais turistas nacionais e cariocas que estão se interessando em conhecer mais sobre a história.
O direito à memória e à história afrobrasileira é uma conquista de décadas do movimento negro no país, desde a Constituição de 1988 e com a Lei 10639/2003, que torna o ensino obrigatório nas escolas da história da África a história afro-brasileira. Existem diversos desafios para a implementação da lei, mas muitos avanços já foram feitos como a implementação de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
E qual o papel do Turismo nisso tudo? O Turismo é uma grande ferramenta que possibilita aprendermos in loco, ou seja, conhecer a história no próprio local. A história oral representa a memória viva da localidade e das pessoas que nela habitam. Além de contribuir para a geração de renda de comunidades locais, contribui para quebra de barreiras e estereótipos em relação a pessoas e territórios.
A Conectando Territórios desenvolve eventos de diálogos com a Afrodiáspora desde 2017, com a seguinte questão inicial: o que significa ser negro nesse lugar? Por isso, abre discussões para questões raciais, mas também culturais em cidades como Miami e São Francisco, as últimas edições do evento. Além disso, também trabalhamos com Web Séries, em nosso canal do You Tube, trazendo outras narrativas para o turismo e para a cultura afro-brasileira. A primeira Web Série, “Nzinga Mulheres Viajantes”, traz histórias de mulheres negras que levam seus sonhos e projetos para outros países no mundo e a Web Série “Afrocarioca” traz a cultura afrobrasileira em diferentes bairros do Rio de Janeiro, onde entrevistamos pessoas importantes para a manutenção da cultura viva.
Por fim, depois do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos em 2020, surge no Brasil o Afroturismo, um movimento que empreendedores negros do turismo trazem para dentro do turismo a história negra presente em diversas cidades do Brasil. Esse movimento favorece para a luta antirracista e de aproximação da história negra que não está nos livros escolares. Conhecer a história brasileira é conhecer a história afro-brasileira.
QUEM É THAÍS ROSA PINHEIRO?
Thaís Rosa Pinheiro é Mestra em Memória Social, pesquisadora em Cultura Afrodiaspórica, guia de turismo e CEO da Conectando Territórios.