Nilma Lino Gomes é doutora em Antropologia Social pela USP, pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra e em Educação pela UFSCAR. É professora titular da Faculdade de Educação da UFMG. Foi fundadora e coordenadora do Programa Ações Afirmativas na UFMG e atualmente integra a equipe de pesquisadores(as) desse programa. É coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (NERA/CNPq).
Foi reitora pro tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
Publicou vários livros sobre a questão racial, entre eles: A mulher negra que vi de perto: o processo de construção da identidade racial de professoras negras (Mazza Edições, 1995); Afirmando direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade (Autêntica, 2004), em parceria com Aracy Alves Martins; O negro no Brasil de hoje (Global Editora, 2006), em parceria com Kabengele Munanga; e O movimento negro educador (Vozes, 2017).
Você foi fundadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos Afro-brasileiros (GIEAB) e do grupo Educação e Diversidade Étnico-Cultural(EDEC), presidiu a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Como você vê atualmente os investimentos feitos em ciência pelas Universidades em relação à diversidade?
Em primeiro lugar, eu fui fundadora, presidenta, coordenadora desses grupos e das instituições que você falou, mas nunca sozinha. Eu acho que é sempre importante destacar, sempre trabalhei com coletivos. Então, em todos esses espaços pelos quais passei, tínhamos um pequeno grupo que coordenava, que liderava, que fundava. E eu acho que isso já é muito importante para pensar todo tipo de ciências que nós gostaríamos que o Brasil construísse. Uma ciência que destacasse menos as genialidades individuais e que pudesse destacar mais os trabalhos coletivos. Porque determinadas pessoas acabam se tornando as referências desses trabalhos, mas nenhum prêmio Nobel consegue chegar ao prêmio Nobel sozinho. Sempre tem um grupo de pessoas que respiraram, possibilitaram, trabalhavam junto com e que possibilitavam que algumas pessoas então se tornassem referências de áreas de temáticas, de discussões. Eu acho que esse é um primeiro ponto, sabe? Para gente pensar uma mudança no campo científico: que esse campo científico consiga falar muito mais sobre o que os coletivos sociais produzem, do que entrar numa linha muito meritocrática, que é a base da forma como a ciência é vista, não só no Brasil, mas no mundo – que destaca como se fosse uma pessoa a responsável pelas descobertas e pelas genialidades. Principalmente, pensando que ciência se realiza no contexto das relações de poder e aí nós vamos ter um destaque, como se a essa genialidade que se torna referência científica em áreas – que muitas vezes é individual ou que é vista de forma individual – exclui determinados sujeitos e pensamentos, e aí, nesse caso, nós podemos pensar na população negra e nas mulheres negras, e nesse caso nós podemos pensar, nas mulheres de um modo geral na população indígena, que dificilmente aparece como produtora de conhecimento e sabemos o tanto que a ciência bebeu na fonte, e bebe na fonte de conhecimentos dos povos e comunidades indígenas do nosso país. E as pessoas com deficiência que também não parecem no campo da ciência como os cientistas, como pesquisadoras, como pessoas que produzem também conhecimento. Então eu acho que esse é o primeiro ponto a destacar.
O segundo ponto é sobre o investimento na ciência e em relação à diversidade. Eu acho que esse investimento vem crescendo. Nos últimos anos, e mais precisamente, no século 21. E ele vem crescendo num movimento que não é interno à ciência. É um movimento externo à ciência. Externo ao campo da produção do conhecimento. Esse paulatino reconhecimento da importância da diversidade no campo científico e de iniciativas que vão se abrindo para que essa diversidade ela apareça também como é passível de ser produtora de conhecimento, vem das lutas sociais. Vem dos movimentos sociais, têm desses movimentos que primeiro denunciam essa ideia de uma única ciência universal para todos e todas. Esses movimentos que denunciam a ausência de sujeitos diversos no campo do conhecimento científico. E que denunciam também esse lugar de objeto da ciência, que os sujeitos diversos, mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência sempre foram vistos e colocados nesse campo científico.
Mas você pode falar que dentro da ciência também nós temos pesquisadores, pesquisadoras que denunciam esse status de coisa… sim, nós temos, mas se você for olhar a trajetória desses pesquisadores e pesquisadoras, geralmente são pessoas que vêm ou se inspiram nas lutas sociais em prol de maiores direitos e de reconhecimento de direitos.
Então eu diria para você que a paulatina mudança que nós temos visto no campo científico em relação à diversidade é um fruto de uma pressão histórica e que no século 21 essa pressão ela foi maior por uma série de fatores, até mesmo pelo histórico de organização das lutas sociais e dos grupos sociais, quando também reconhecem que esse espaço da ciência tem que ser um espaço também da diversidade. E que se nós pensamos que temos que conquistar espaços e lugares para os sujeitos diferentes que nas relações de poder são tratados como inferiores e desiguais, o espaço da ciência também, ele passa a ser cada vez mais visto como importante para mudanças na sociedade, para transformações na sociedade, para ter um compromisso com a transformação social desmontando uma ideia de que os conhecimentos científicos e a produção científica são desinteressados com a transformação. Não tem como: tem que ser interessado com a transformação do mundo, principalmente em sociedades muito desiguais, como é o caso da sociedade brasileira.
Podemos ter uma ciência decolonial?
Olha, eu confesso para você que eu nunca parei para pensar muito numa ciência decolonial. Eu fiquei até pensando assim: será que essa é a melhor maneira de nomear esses movimentos que nós temos construído cada vez mais indagar a ciência moderna e a sua primazia como única forma de conhecer, como única forma de produzir conhecimento? E tenho me indagado.
Eu, particularmente, não uso muito a expressão ciência decolonial. Não quero me contrapor a ideia que está por trás de pensar numa ciência decolonial, no sentido da descolonização da ciência… E eu também penso nessa hipótese… eu conversava numa conferência que eu fiz recentemente que é inspirada nas diretrizes curriculares para a Educação das relações étnico raciais e para o ensino de história, e tem uma outra expressão lá que eu achei muito interessante que é desalienar o conhecimento. E eu falava isso: que nós precisamos de descolonizar o conhecimento e desalienar esse conhecimento, porque as pessoas ficam basicamente alienadas em relação à possibilidade de outras formas de conhecer, produzidas por outros grupos sociais, culturais, éticos e raciais… e que são formas de produção do conhecimento milenares, não são de agora, seculares. Porque muitas vezes fica parecendo que é uma questão que surgiu agora, que é da nossa vida contemporânea, mas não. O que está acontecendo é que eu acho que nesse momento, que nós chamamos de nossa atualidade, está havendo um maior reconhecimento e uma maior busca pelo reconhecimento dessas outras formas de conhecer porque nós temos também mais desses sujeitos e sujeitas excluídas – não só da ciência, mas também de um conjunto de outros setores da sociedade – agora mais presentes em lugares de direito. E por isso é importante a democracia… quanto mais você democratiza uma sociedade, mais democratiza todas as áreas, e a nossa luta é por todas as áreas e a ciência entrou muito forte agora como um dos locos que nós queremos democratizar também.
E democratizar pela presença das sujeitas e dos sujeitos diversos dentro do próprio campo científico. E isso tem muito a ver, na minha perspectiva, com o momento de um crescimento das políticas de ações afirmativas no nosso país. Eu vejo que é o momento da nossa discussão e indagação em torno dessa ciência moderna, e a sua primazia histórica está muito relacionada com a presença desses sujeitos excluídos do contexto, das relações de poder, num lugar que é um lugar de poder, que é o espaço da universidade. Como esse espaço de produção científica na graduação, por exemplo. E aí vem a política de cotas na graduação e na pós-graduação e, principalmente, na pós-graduação, como nesse trânsito dos doutorandos. E indo um passo além, com professoras e professores das instituições de Ensino Superior, em especial as públicas.
Então, a presença desses sujeitos, que é aquilo que eu falava, que vem de uma luta de fora para dentro do campo da ciência – essa presença tem se reforçado e agora esse debate ele se amplia, pois ele vinha acontecendo de forma muito incipiente e hoje eu acho que é um debate mais ampliado. Por que que eu estou falando isso? Para chegar na ideia da ciência decolonial. Então eu prefiro pensar numa, como é que eu vou é chamar? Eu prefiro pensar numa pluralidade, numa diversidade emancipatória do conhecimento. Eu prefiro trazer a palavra emancipatória, sabe? Porque é reconhecer uma pluralidade de formas de produzir conhecimento, uma diversidade de sujeitos e sujeitas que produzem esse conhecimento de forma emancipatória. O que eu chamo de ‘emancipatória’: para mim tem a ver com o reconhecimento de que é importante o campo científico- e quando eu estou falando no campo científico, estou pensando nas ciências de modo geral – se comprometerem com essa transformação da sociedade e uma transformação da sociedade, inspirada nos avanços que as lutas sociais trouxeram para essa sociedade. Isso que é o ‘emancipatório’.
“Não tem como: tem que ser interessado com a transformação do mundo, principalmente em sociedades muito desiguais, como é o caso da sociedade brasileira.”
Então acho que nós estamos caminhando para este tipo de leitura, interpretação e ação no campo das ciências e isso tem acontecido muito em função da presença desses sujeitos, dessas sujeitas – mesmo no caso da população negra, que é o meu caso – mesmo que nós não estejamos ainda no contexto dos cargos de representatividade. E no campo da ciência, mesmo nas relações de poder, nós enfrentemos as disputas de maneira muito desigual. Mas só o fato de nós estarmos presentes, os nossos corpos, os nossos pensamentos, a nossa visão de mundo e disputando – porque é uma disputa desse espaço – para que ele se democratize mais, se diversifique mais. Então eu acho que nós estamos caminhando nesta produção. Temos hoje pessoas que começam a se tornar referência nessas produções. E quando nós vamos olhar um pouco a biografia dessas pessoas e o resultado dos seus focos de pesquisa, sempre nós vamos encontrar ou a presença dos movimentos sociais – e no caso de pessoas negras, a presença do movimento negro – ou nós vamos encontrar uma inspiração, mesmo que as pessoas não tenham sido orgânicas desses movimentos ou não sejam orgânicas, nós vamos encontrar uma inspiração. E é aquilo que eu sempre tenho repetido nos últimos anos e que colocam no meu livro “O movimento negro educador”, uma reeducação dessas pessoas, para esse aprendizado de lutas, de reconhecimentos, de formas de ser, que esse movimento negro expande para a sociedade brasileira. E expande por que? Ele expande porque ele consegue – aquilo que eu chamo a atenção no meu livro – ser um organizador desses saberes, conhecimentos que a população negra produz ao longo da sua presença no Brasil, da nossa história aqui, nesse país. Ser um organizador e um sistematizador disso. Então por que que eu chamo a atenção com esse detalhe? Porque não é para pensar que é só o movimento negro que produz saberes, conhecimentos e tal – ele produz também, ele é um produtor, mas antes de ser um produtor, ele tem essa capacidade de ser um articulador, um sistematizador, um divulgador, e expande esses conhecimentos para além do seu próprio foco específico, dos sujeitos específicos da sua luta. Então eu vou percebendo que no campo das relações raciais, no campo de uma produção de epistemologias negras, como costumamos dizer, essa dimensão da luta social produzida por esse movimento, organizada por esse movimento, ela é muito forte e tem sido muito forte para orientar os olhares, orientar as indagações de pesquisa e chegar a novas metodologias de pesquisa, porque é isso que a gente precisa.
Quando nós falamos, quer seja de uma ciência decolonial, quer seja dessa ideia de pluralidade, diversidade emancipatória de conhecimentos, como estou falando aqui, eu acho que não tem como nós não compreendermos que a mudança em curso é uma mudança para a sociedade. Não é uma mudança só para segmentos específicos. E a gente já tem uma série de discussões que vão chamar a atenção para o quanto que a diversidade é salutar para o conhecimento científico, do quanto que a presença da diversidade traz indagações, dimensões instigantes, metodologias, interpretações, referências teóricas outras, para a própria ciência se emancipar E na hora que essa ciência se emancipa, ela ajuda na emancipação da sociedade também. Então é isso, quando eu penso seja nesta perspectiva decolonial ou nesta perspectiva que eu trago, eu sempre gosto de enfatizar, que a gente está num campo muito denso hoje de uma disputa de formas de conceber a ciência. E é uma disputa também de formas de produzir conhecimento, de formas de produzir ciência. Porque nas áreas humanos e sociais ela encontra mais esse espaço para ser feita – tem resistências, tem, mas ela encontra mais espaço – mas nós ainda temos muita dificuldade de que essa outra concepção de ciência também esteja presenta nas áreas de exatas, nas áreas tecnológicas e alguns setores das áreas médicas, da saúde. Então é uma disputa sim, porque nós estamos falando de relações de poder.
Então é uma disputa sim, porque nós estamos falando de relações de poder. Quando nós falamos da ciência no Brasil, no mundo, nós estamos falando de relações de poder e relações de poder tem a capacidade de interferir nas vidas das pessoas, de interferir em decisões governamentais, de interferir em políticas. Por isso esse campo da ciência é importante para quem luta por uma democracia, para quem luta por uma sociedade melhor.
“Só o fato de nós estarmos presentes, os nossos corpos, os nossos pensamentos, a nossa visão de mundo e disputando – porque é uma disputa desse espaço – para que ele se democratize mais, se diversifique mais.”
A próxima pergunta seria ”como a ancestralidade e os saberes populares podem se relacionar com a ciência? ”, mas acho que já foi respondido: a relação direta seria esta, desses sujeitos com diferentes histórias, diferentes conhecimentos, tencionarem essa produção do conhecimento, essa ciência, e produzirem novos conhecimentos, novas epistemologias, com vistas a uma transformação social, seria isso?
Seria, seria sim. Com vistas a esta transformação social, e esta ‘transformação social’ – o que ela significa? Ela significa a construção de um mundo melhor para todas as pessoas viverem. Acho que muitas vezes nós não explicamos o que entendemos por uma transformação social. Essa transformação social é a luta pela consolidação de uma vida digna para as pessoas. Sabe… uma vida sem racismo, uma vida sem capacitismo, sem LGBTQIAP+ fobia, uma vida sem machismo, sem sexismo, uma vida na qual as desigualdades econômicas possam ser superadas. Ou seja, uma vida com mais justiça, justiça social e uma vida com justiça cognitiva. Em que os diferentes conhecimentos sejam considerados enquanto tais. E junto com esse reconhecimento dos conhecimentos outros, os outros grupos, as outras epistemologias, serem reconhecidas enquanto tais, isso significa o reconhecimento dos sujeitos e das sujeitas que os produzem como sujeitos de conhecimento.
Nós estamos falando disso. Porque se ainda há uma separação como se esses conhecimentos ancestrais, por exemplo, não têm espaços dentro do que a gente pensa no campo científico, há uma rejeição aos sujeitos e sujeitas que os produzem e a toda uma ancestralidade, toda uma tradição, os valores, a cosmovisão desses sujeitos e dessas sujeitas. E isso significa pensar como que ao longo da história, essa visão, que é uma visão elitista de ciência, tem feito mal para a própria sociedade brasileira. E não ajuda a essa sociedade a se democratizar mais por dentro. E é muito importante.
Vamos pensar na Escola Básica? É muito importante que as professoras e os professores, que chegam, principalmente, nas escolas periféricas e que têm na sua frente crianças, em sua maioria, negras, todas as crianças pobres. Crianças pobres que vêm de níveis diferenciados de pobreza, não é isso? A pobreza todo é tudo igual, tem níveis diferenciados, inclusive na violência de viver essa pobreza. E essas professoras e esses professores olhem para esses estudantes e essas estudantes e os vejam como produtores de conhecimento. Já os estimule desde daí – as suas descobertas, as suas intuições, a forma como a própria vida que levam – e mesmo sendo uma vida de opressão produz, como Paulo Freire nos chamou atenção, pedagogia. Mesmo na história de opressão, e isso é, digamos assim, o que é fascinante, no humano, nessa capacidade humana de mesmas situações mais adversas de vida, você conseguir pensar sobre essa vida, desafiar a própria vida, desafiar os limites, tentar superar os limites, construir, produzir. Isso que eu acho que é o que é fascinante nessa nossa humanidade, digamos assim, e que a Educação por excelência tem que compreender e o estímulo, olhar para esses sujeitos que estão na Educação Básica, tem que ser esse olhar que desperte essa potência que existe nas pessoas, nas estudantes, nos estudantes.
E quando eu penso no Ensino Superior, principalmente após a implementação das ações afirmativas por meio das cotas – que nas instituições federais são para a escola pública, por renda, pela questão racial, para indígenas, para pessoas com deficiência – esse mesmo tipo de postura pedagógica, postura profissional… é urgente que também as professoras, os professores do Ensino Superior as adote. Veja bem, não deveria ser um lugar com mais dificuldade de implementar essa postura, porque é um lugar que está mais próximo deste campo científico da pesquisa, da produção, da socialização e divulgação do conhecimento, está muito mais próximo e é o espaço onde as profissionais e os profissionais que atuam no Ensino Superior e há mais condições de circular mais nesse campo do que professores e professoras da Educação Básica. E nós encontramos muitas vezes dificuldade igual ou maior até no Ensino Superior, para que esse tipo de ação e de postura que eu estou chamando atenção aqui seja implementada. Então a gente tem um viés meritocrático, que funciona como se essa dimensão do mérito fosse algo que ou é inato, que nasce com o sujeito, ou que é alguma coisa abstrata. E que não considera que as pessoas todas têm o mérito, no sentido de uma capacidade, de potencial de produzir, mas que nós temos condições muito indignas e desiguais para que as pessoas possam deixar fluir suas próprias capacidades. Então eu costumo dizer que maior mérito tem a instituição ou os profissionais, pesquisadores e pesquisadoras docentes das instituições que reconhecem isso, e constroem os caminhos e as condições para que esse potencial ele se expanda. E isso sim, aí eu vou falar assim: essa instituição para mim tem um mérito, mérito de fazer um trabalho como esse, que reconheça a humanidade, a capacidade de produzir conhecimento, o pensamento, a riqueza de pensamento de sujeitos que antes não estavam e agora chegam por direito nesses espaços e que mesmo vindo situações muito adversas, conseguem também contribuir para uma transformação no campo da ciência.
Mas para isso, você tem que conseguir criar as condições para isso, e não só pensando nas condições de permanência, se estou falando de instituições de Ensino Superior, mas principalmente, nós temos que construir as políticas públicas para que as instituições tenham essas condições. Porque muitas vezes o que nós vamos ouvir, de gestores e gestoras, é que faltam as condições adequadas e eu concordo que muitas vezes internamente, ainda mais nesses últimos anos no Brasil, de ataques às Ciências, de um negativismo tremendo, com a falta de investimento público e cortes orçamentários que nós tivemos para as instituições federais. As instituições estaduais de Ensino Superior sempre lidaram com muitas dificuldades, porque é de outra ordem pensar a questão do ensino superior nos estados, com as universidades estaduais. Então essas condições não têm sido as melhores condições.
Então as políticas públicas, elas são importantes, principalmente no sentido do orçamento. Mas isso não pode ser uma desculpa para não se fazer, porque mesmo diante de toda precariedade, as ações continuaram fluindo dentro das universidades. Então eu acho que agora é um outro momento para pensarmos a ciência e essa mudança e, principalmente, um investimento nos estudantes e nas estudantes da graduação também. O estímulo para que, já na graduação, a gente também crie as oportunidades para que estudantes negros, indígenas, de escola pública, com deficiência, possam também ter uma iniciação científica adequada. Isso diz respeito às bolsas. Isso diz a condição de internacionalização. Isso diz respeito às possibilidades do aprendizado de outras línguas. Então eu falo que não é só a assistência estudantil, no sentido econômico, mas precisa ser também de uma permanência emancipatória para, digamos assim, que seja possível criar uma conexão entre a luta pela ocupação de novos espaços dentro desses lugares que antes eram reservados para determinados grupos econômicos e raciais. E que a permanência signifique que essa luta, tenha com uma chegada, uma acolhida digna. E acho que nós ainda estamos caminhando com muitos empecilhos nesses desse tipo de ação.
Como começou sua a trajetória na divulgação científica?
Bom, tem tanto tempo isso! Bem, o meu encontro com este campo da ciência e depois passar a ser uma divulgadora dessa ciência tem a ver com a minha passagem na graduação em primeiro lugar, quando na década de 80 nós quase não tínhamos bolsa de iniciação científica. Naquela época, nós, as alunas, e eu venho da pedagogia que é um curso popular com muitos estudantes pobres, negros, e que vai formar para uma área que é a Educação, uma área por excelência extremamente importante, ao mesmo tempo muito desvalorizada. Eu lembro que tinha uma aluna que era bolsista de iniciação científica que era uma aluna de classe média alta, branca etc. E a gente, nós, mulheres, éramos meninas muito novas naquela época da graduação, e tínhamos a ideia de que esse tipo de bolsa era só para estudantes muito privilegiados e privilegiadas, essa era nossa ideia. Nunca imaginávamos que aquilo pudesse chegar até nós. E na faculdade onde eu estudava, na faculdade de educação da UFMG, uma das diretoras, a diretora e doutora Glaura Vasques de Miranda, conversou conosco e, junto com a reitoria, instituiu um programa muito diferenciado, que foi o sistema de bolsas de estudos em tempo integral.
Esse sistema de bolsa de estudos de tempo integral era voltado principalmente para alunas trabalhadoras que queriam produzir pesquisa, queriam realizar a monografia. Porque na nossa graduação não se fazia isso para se formar. E você tinha que se dedicar mesmo nos turnos manhã/tarde ou tarde/noite, dependendo do turno que você estudava. E ela abriu essa seleção e eu me candidatei. Porque eu sempre fui uma pessoa que gostava muito de estudar, de ler e tal, e eu me candidatei na época. Eu já era professora da Educação Básica dos anos iniciais e fiz uma negociação familiar, porque a bolsa que nós ganhávamos era muito reduzida e muito menor do que o salário que eu ganhava. Então eu me lembro que negociei com a minha mãe: eu ia continuar dando a quantia que nós sempre dávamos para ajudar, que todos os filhos davam… eu continuaria, então ficaria com menos para mim. Eu viveria com esse valor a menos. E foi assim. Então eu pedi licença sem vencimento, então eu concorri, passei e fui atuar.
Então como bolsista, o mundo do que era a universidade se abriu para mim, o campo de produção de conhecimento etc. se deu nesse momento, porque aí eu podia ficar integralmente na universidade, e além disso participava das atividades de pesquisa, metodologia, palestras, que este lugar de bolsista dava e nós vivíamos a Universidade Federal de Minas Gerais, o teatro, o cinema. Ouvíamos as defesas de teses, íamos para a pós-graduação. Conhecíamos outros professores e professoras que naquela época davam aula só na pós-graduação e não na graduação. Vivíamos os eventos culturais que têm nas universidades e tudo que tem até hoje. Hoje tem muito mais. Mas como que uma estudante trabalhadora vivenciaria essas questões todas, principalmente quem estuda no noturno? Não era o meu caso porque eu estudava no diurno porque eu trabalhava à tarde. Mas eu saia e ia dar aula numa escola bem periférica e não voltava mais para a universidade, né. Então viver esse espaço é um direito, né? Deveria ser um direito para todas as estudantes, os estudantes e ainda não é. Nós sabemos que avançamos, mas ainda não é para todos e para todas. Então acho que ali eu tive contato com o mundo da ciência. Essa produção de conhecimento científico que vai além das aulas da graduação. E vai além de uma formação profissional stricto sensu, para atuar na escola com a orientadora, supervisora etc., que era a minha formação, era pedagogia.
“Eu acho que agora é um outro momento para pensarmos a ciência e essa mudança e, principalmente, um investimento nos estudantes e nas estudantes da graduação também.”
E aí nós tivemos que desenvolver uma monografia – o que era raro naquela época, no nosso curso – orientada por uma professora, Maria Antonieta Bianchi. E aí eu entrei no campo da metodologia da pesquisa. Eu já era instigada por perguntas que eu fazia e não tinha resposta. E eu tinha naquela época a pergunta de por que que a supervisão era tão desvalorizada no campo da prática educacional, vista como alguém que fiscalizava, gerente, sendo que a nossa formação toda era para uma coordenação pedagógica, para trabalhar junto com a docente e o docente, para pensar, junto com a gestão da escola, a melhor forma da escola receber as estudantes, os estudantes… Mas quando nós chegávamos nos estágios, e até mesmo dentro das escolas que a gente via, principalmente quando nós estávamos pensando e atuando no ensino médio, havia uma grande rivalidade entre os docentes e essa profissional. Então isso me instigava e eu fui estudar um pouco dessa trajetória da construção da supervisão escolar em Minas Gerais. E só depois que eu terminei o trabalho que eu descobri que ele era inédito, que ninguém tinha feito esse trabalho. Aí, então, essa monografia até hoje é lida por pessoas de outros lugares e tudo mais. Para mim aquele foi um marco. Um marco de como entender o que é esse campo de produção do conhecimento era mais do que eu imaginava ser.
E isso se deu conjuntamente com a minha prática. Quando eu me formei como pedagoga e fui atuar em escola pública e escola privada ao mesmo tempo, eu voltei para a prefeitura, e comecei a ter os meus primeiros contatos com o racismo no interior da sala de aula.
Em relação a mim mesma e em relação à forma como eu via minhas crianças – a gente tem mania de falar assim dos estudantes pobres e negros da Educação Infantil, onde eu estava atuando na escola pública e os estudantes e as estudantes da Educação Infantil na escola privada, onde eu atuava. Eu me vi no meio dessa tensão, eu me vi no meio de contradição de olhares e de práticas minhas em relação a essas crianças. Isso me chocou muito e foi daí que me surgiu também o diálogo com colegas, com professores e tal, a ideia de ir para o Mestrado em Educação e levar para lá também uma pergunta que eu me fazia e que eu não tinha resposta, que era: como é que era essa trajetória de mulheres negras, professoras da Educação Básica diante de situações, por exemplo, de discriminação racial entre os próprios estudantes, diante do debate sobre a questão racial que eu não via acontecer e claro, aí via também a minha, que me influencia até hoje.
Foi um momento em que eu entrei em contato com outras estudantes negras na graduação – poucas que existiam à época – e nós tínhamos todas as perguntas parecidas em relação às suas áreas e mais ainda, a gente não encontrava professores e professoras para dialogarem conosco sobre isso. Professores negros e negros, então menos ainda, eram pouquíssimos. A gente contava uma aqui, outro ali, que queriam também fazer esse debate da dimensão racial. E aí nós fundamos o grupo interdisciplinar de estudos afro-brasileiros, que vocês citaram, e nesse grupo nós passamos a fazer pesquisas por nós mesmas. Nós criamos algumas condições de pesquisa para nós mesmas, buscávamos dentro das Universidade Federal o supor-te para o grupo existir. Então nós conseguimos uma sala com o diretor da faculdade de Letras, na época, uma sala com alguma estrutura para a gente ficar. Era um diretor, Jacyntho Lins, ele sempre estimulou muito a movimentação estudantil e outras iniciativas estudantis, e ele achou a nossa iniciativa muito legal. Nós então apresentamos um projeto para a Fundação Mendes Pimentel, que à época era aquela que distribuía a bolsas socioeconômicas para os estudantes para trabalhar na biblioteca, para trabalhar na reitoria e serviços burocráticos. Nós fizemos um projeto porque queríamos 2 bolsas para o nosso grupo. Porque, como éramos todas pobres, nós queríamos possibilitar um revezamento para quem poderia ficar na sala, receber estudantes e o nosso foco era entender mais a questão racial nas áreas das Humanidades e foi uma surpresa muito grande para a fundação receber de um grupo de estudantes negras um projeto muito bem-acabado. E nós conseguimos as 2 bolsas. Fomos o único grupo na universidade naquele momento que tinha bolsas da fundação da universidade, para que nós mesmos nos autogeríssemos. E produzimos muita coisa, nós fizemos seminários, debates, trouxemos pessoas, conseguimos recursos e isso foi também me fazendo entrar cada vez mais nesse campo da pesquisa, da ciência, da produção, do conhecimento.
“Nós criamos algumas condições de pesquisa para nós mesmas, buscávamos dentro das Universidade Federal o suporte para o grupo existir.”
Juntamente com o encontro com o movimento negro porque quando o grupo surge, nós surgimos na cidade de Belo Horizonte com um grupo de acadêmicas, de estudantes acadêmicas muito diferentes dos grupos de movimento negro da cidade, que eram de uma exceção política, mas menos acadêmica. E a gente sabe que errou, havia rivalidades, inclusive, dessa ideia das pessoas negras na época que entravam para a universidade, havia uma tensão nesse campo da produção de conhecimento muito utilitária, que era feita em relação aos nossos temas e o tempo inteiro naquela época, o movimento acusava a universidade de produzir conhecimento com o olhar sobre as pessoas negras como objeto de produção, objeto de pesquisa e não como sujeitos de pesquisa. Essa é uma discussão muito forte na década de 80. Então quando nós surgimos, perguntavam: mas quem são essas mulheres? Quem são essas mulheres negras? Que não estão aqui nessa militância política do movimento negro, mas estão construindo uma militância acadêmica?
Então para gente criar aproximações, o que que nós fizemos? Começamos a fazer debates públicos, seminários, levando os pesquisadores no sentido de aproximar o movimento negro e pessoas interessadas dessa produção da universidade e estimulando que nós também negros e negras, pudéssemos pleitear o espaço da universidade ao entrar e também produzir conhecimento sobre a temática racial.
Então aí começa um pouco o meu papel de divulgadora. Porque aí, num primeiro momento, era de formação como pesquisadora. E depois, com a relação com o movimento negro, a gente começa a falar: olha, esse conhecimento que nós estamos produzindo aqui tem que ser socializado, divulgado para a sociedade e para o movimento negro. Aí a gente abre esse espaço dos debates, do seminário. Nós começamos a participar de debates e seminários com o movimento negro e participamos do primeiro seminário nacional de universitários negros e negras (SENUN), na Bahia.
E é muito interessante que naquela época nós já pleiteávamos ações afirmativas. Já falávamos das cotas. Era anos 90, nós já tínhamos a marcha Zumbi dos Palmares…Era 1995 caminhando dos anos 2000. Toda essa mudança foi acontecendo e quando eu terminei o Mestrado e fiz o concurso para faculdade de Educação da UFMG, eu já entrei com essa concepção e essa postura. Eu já entrei como uma pesquisadora negra que estava na universidade, já fazia mil links. E reconhecia esse lugar do movimento negro e transitava nesse lugar do movimento negro. Eu e minhas colegas de grupo, fomos referência, inspiração para muitos outros colegas que tinham resistência à universidade, para tentarem o vestibular, tentarem o Mestrado e começarem, em Belo Horizonte, a buscar esse espaço de direito.
E quando eu cheguei na faculdade de Educação alguns anos depois, quando começavam os debates sobre as ações afirmativas, as cotas e tal, nós construímos um projeto chamado ações afirmativas na UFMG e concorremos ao primeiro edital de ações afirmativas que teve em nível nacional com recursos da Fundação Ford, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, programa políticas da cor, e um grupo de colegas, junto comigo, nós conseguimos ser aprovados neste edital e com esse recurso, eu comecei assim a minha trajetória de formar jovens negros e negras, como pesquisadores e pesquisadoras na universidade.
Nós então selecionávamos os jovens negros e negras e ofertávamos cursos, leitura e produção de texto, informática – porque naquela época pouquíssimas pessoas tinham computador e acesso a ele, principalmente as negras e as pobres – E metodologia de pesquisa, cursos sobre a temática racial, sobre as teorias raciais, sobre pensadores negros e negras. Nós fizemos os primeiros debates sobre ações afirmativas na UFMG, nós tínhamos outros projetos, produzíamos filmes, vídeos que a gente divulgava gratuitamente, realizávamos pesquisas de iniciação científica e nós concorríamos a todos os editais. Fizemos projetos de extensão com professoras da Educação Básica também trabalhando na questão racial. Olha, nós fizemos muita coisa nesse programa Ações Afirmativas, e a ideia era formar quadros intelectuais, políticos, artísticos… sabe? Que pudessem ter uma graduação, de acolhimento… e de investimento nesse potencial acadêmico. Naquela época, a gente ainda nem falava em cotas. Depois, quando o debate das cotas começou, com as ações afirmativas, entrou em cheio esse debate dentro da UFMG. E levando demandas para a reitoria, participando de todo esses movimentos em nível nacional, e a gente construiu uma rede. Nós somos hoje uma rede de pesquisadoras e pesquisadores negros que estamos dentro da associação brasileira de pesquisadores. Esses atores negros, que fizemos o seminário nacional de universitários negros e negras (SENUN), a gente tem uma rede de amizade e de militância acadêmica e de intervenção na produção do conhecimento. Então tudo aquilo que eu fiz e faço de produção do conhecimento, eu tenho um dos objetivos, socializar e divulgar esse conhecimento.
Essa divulgação científica, ela se dá, (e eu acho que esse é o diferencial, esse é o diferencial nosso de intelectuais negros e negras) porque ela se dá não somente naquilo que eu volto à minha fala inicial, numa referência a uma generalidade individual, sabe? A nossa ideia de divulgação do conhecimento tem a ver com a criação de espaços de direito para os sujeitos e sujeitas de conhecimento negros e negras para que, ao formarmos novos pesquisadores e pesquisadoras negras, esses e essas possam ser a nossa forma de divulgação científica. Que para onde essas pessoas vão atuar e trabalhar, elas ali também fazem com que se circule mais esse conhecimento produzido pelas pessoas negras, que pode ser com foco na questão racial, pode ser com foco em outras questões, mas que são corpos negros mostrando que os nossos corpos pensam, que os nossos corpos agem, que os nossos corpos produzem conhecimento, que os nossos corpos trazem novidades. Que os nossos corpos impactam a ciência, que fazem com que a ciência se emancipe. Então eu acho que essa é a nossa ideia de divulgação científica. Não é uma divulgação para os pares somente. Ela é uma divulgação para a sociedade. E eu acho que isso deveria ser o papel de uma boa divulgação científica, você ter o espaço que os pares têm. Esses espaços nós estamos… da produtividade científica do CNPq…eu estou lá, outros colegas mais estão etc., os congressos etc., mas eu acho que o nosso ganho maior nessa divulgação científica é quando nós conseguimos que sujeitas e sujeitos negros e negras sejam também reconhecidos como sujeitos de conhecimento e produzam novos conhecimentos e divulguem esses novos conhecimentos para a sociedade e interferiram numa luta antirracista. Uma luta antirracista dentro da própria produção do conhecimento, que diz respeito não somente a superar equívocos que a própria ciência construiu sobre nós e a nossa ancestralidade negra, então somos nós que estamos superando esses equívocos, e que hoje alguns deles vão ser reconhecidos por grandes pesquisadores e pesquisadoras brancas, mas nós instigamos, né. E mais ainda, além disso, mostrar que esse conhecimento ele é coletivo, que essa produção é coletiva e que quanto mais coletiva, mais impacto ela tem na transformação emancipatória da sociedade, mais justiça cognitiva a gente consegue fazer. E eu acho que esse é um caminho que negros e negras já estão trilhando há mais tempo, mas eu vejo a população indígena também trilhando esse caminho hoje de maneira muito diferenciada, inclusive pela questão histórica das desigualdades, que incide sobre a população indígena, inclusive, por causa da forma de pensar, pela cosmovisão indígena em relação ao conhecimento e que nós aprendemos muito com eles e elas. Nós aprendemos muito com esses conhecimentos ancestrais dos povos originários. Mas agora também nessa luta por uma ação afirmativa, uma presença afirmativa também os conhecimentos indígenas, eles começam a circular e fazer parte desse campo da ciência também.
E por isso, finalizando esta parte, há muitas tensões na nossa sociedade, porque isso mexe com o status quo. Isso diz respeito a mexer nas relações de poder, de dizer que nós temos que democratizar mais esse poder. E o poder enquanto forma de relação dentro de uma sociedade desigual, de liderança, de busca por lideranças econômicas, intelectuais, dentro de uma sociedade desigual, ele não é pensado como algo que possa ser distribuído, democratizado. E nós estamos impactando exatamente isso. Nós não podemos mais fomentar e naturalizar as desigualdades raciais e de gênero no campo da ciência, no campo da produção do conhecimento, a ciência tem um compromisso com a superação das desigualdades. E é isso que nós estamos tencionando na ciência hoje, porque os grupos hegemônicos do campo científico no Brasil ainda são grupos que pensam uma ciência neutra. Infelizmente.
Você foi vencedora do Prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher de 2022 por sua trajetória re-conhecida. Como você vê atualmente a relação das meninas e mulheres negras com a ciência e as políticas de incentivo?
Você foi vencedora do Prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher de 2022 por sua trajetória reconhecida. Como você vê atualmente a relação das meninas e mulheres negras com a ciência e as políticas de incentivo?
Eu fiquei muito feliz de ter sido agraciada com o prêmio Carolina Bori. Eu acho que a minha presença, de ter sido a primeira mulher negra agraciada com esse prêmio, já é fruto dessa trajetória que eu falei para vocês. E a primeira coisa que eu falei no meu discurso quando ganhei o prêmio, é exatamente que eu não chegava ali sozinha. Porque nós não chegamos sozinhos em lugar nenhum, mas isso para a tradição afro diaspórica é muito forte, é muito forte quando a gente chega, muitas vezes as pessoas falam: mas por que ficar pedindo benção aos ancestrais? A gente pede benção aos ancestrais em um reconhecimento de que na hora que a Nilma fala, fala uma ancestralidade comigo, fala tanta gente que não pôde falar, tanta gente que foi silenciada, violentada. Os meus ancestrais, as minhas ancestrais. Então, quando eu chego nesses lugares, nesses espaços, tem uma energia que também chega junto comigo, é um reconhecimento da minha parte de que eu não caminhei sozinha. Então isso, desde as presenças materializadas de colegas, estudantes, militantes que me possibilitaram estar ali, até essa outra dimensão mítica. Da ancestralidade ali comigo.
“[…] Mostrar que esse conhecimento ele é coletivo, que essa produção é coletiva e que quanto mais coletiva, mais impacto ela tem na transformação emancipatória da sociedade […].”
Então, para mim, isso é um grande reconhecimento, para nossa causa do povo negro, pelas mulheres negras. E os lugares tão desiguais que nós enfrentamos na sociedade e no campo da produção do conhecimento, da produção da ciência. Então, primeira coisa, eu acho que é isso. Essa felicidade do reconhecimento, e o reconhecimento como uma trajetória coletiva. A outra questão é que eu acho que isso trouxe também uma discussão maior sobre a pouca presença das mulheres negras nesse campo. E especificamente, eu trouxe até uma estatística do IBGE desse último mês de março, de que nós, mulheres negras, somos 28% da população Brasileira e só 10% de nós temos o curso Superior e só 7% de nós somos pesquisadoras. E desse grupo aí, se nós pensarmos nas bolsistas de iniciação científica, eu não tenho esse dado agora, mas há tempos nós éramos zero vírgula qualquer coisa.
Então isso diz respeito a um espaço que mostra uma desigualdade tremenda e que exige ações. Ações do Ministério de Ciência e Tecnologia, ações do Ministério da Educação, das agências de fomento e ações também das universidades do campo, da produção do conhecimento de modo geral. Eu também peguei uma outra estatística mostrando que das mulheres cientistas que estão na Academia Brasileira de Ciências, 14% são mulheres e a pergunta é, onde estão as mulheres negras? Essa é a pergunta. E tem a ver também com uma outra questão… que também fui atrás de uma outra estatística que, em 120 anos, mais de 900 pessoas ganharam o Prêmio Nobel e só 22 mulheres cientistas ganharam o Nobel, e nenhuma mulher negra. Também é do Fórum Econômico Mundial, que vai mostrar que a desigualdade de gênero no Brasil aumentou nesses últimos 2 anos. Então, para esses dados alarmantes que nós mostramos aqui, imagina que se a desigualdade entre as mulheres ela aumentou nesses últimos 2 anos, o que significamos nós, mulheres negras, nesse contexto de desigualdade? A ponto de nós temos mais mulheres negras recebendo o prêmio Carolina Bori?
E isso significa também pensar nas iniciativas. Por exemplo, que o CNPq tem desenvolvido – e ele tem desenvolvido várias iniciativas desse reconhecimento da desigualdade de gênero e para uma maior igualdade entre as mulheres… eu destaquei o programa Mulher & Ciência, que é desde 2005, que faz chamadas públicas para estimular os estudos sobre a questão de gênero, e agora em 2003 lançou uma série Ciência Plural, no dia 8 de março, o Dia Internacional da Mulher… abordando as pesquisadoras mulheres. E aí, você vai vendo uma diminuição, uma quase não presença de mulheres negras e a própria ministra Luciana Santos, ela falou publicamente que ela agora, na gestão dela, sendo a primeira mulher, ministra ciência e tecnologia do nosso país – isso já diz muita coisa – e ela é uma mulher negra, ela se vê quanto uma mulher negra – ela falou que na agenda dela, ela construiu uma agenda que é “Pesquise como uma mulher” e daí uma série de iniciativas surgirão. E na fala que ela fez na abertura da “Ciência Plural”, falou desse olhar sobre a questão de gênero e raça que virá então nessa nova agenda que o CNPq está construindo. Então o que eu penso desse lugar, do que significou receber esse prêmio. Receber esse prêmio significa trazer luz para todos esses dados. E trazer luz para esses dados e indagações de que, afinal, nós já sabemos, mas e agora, o que vamos fazer? O que o país, o que as políticas públicas farão? O que as políticas de pesquisa, de investimento, de fomento à pesquisa farão, dada essa constatação, que, para além da desigualdade de gênero, nós também temos uma desigualdade racial? E assim… eu sou uma das pessoas que tem uma expectativa de que algo surgirá em termos de iniciativa da agência de fomento em relação à desigualdade de raça e gênero na ciência. E eu chamava atenção de que iniciativas existem para mulheres negras. Eu citei 2 que eu conheço, deve ter mais.
Eu gosto sempre de citar o “Investiga Menina”, que é um programa da federal de Goiás, que é conduzido pela Anna Maria Canavarro, que foi presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros também, que é esse investimento nas meninas do Ensino Médio, nas meninas da educação básica e, principalmente, meninas negras, com temática racial, com a discussão da ciência. Então eu acho que para que a gente tenha mais mulheres negras nesses espaços da ciência, precisa-se de um investimento na educação básica. Para fomentar desde lá, não só meninas negras na ciência, e esse é um trabalho também que o CNPQ vem fazendo, mas também estimular não só meninas na ciência, mas meninas negras na ciência e meninas negras nas áreas nas exatas. Meninas negras nas áreas tecnológicas. Tem também um trabalho do Acre que é da Rede Mulher Ações que é um trabalho muito interessante, que é feito com mulheres indígenas e mulheres negras com vistas de entrada na pós-graduação na Federal do Acre e hoje elas vão criar um trabalho com mulheres em situação prisional também.
Então, são iniciativas que vêm das lutas sociais, dos movimentos sociais, de mulheres negras que também estão no campo da ciência, sejam como doutorandas, professoras, mestrandas etc., mas que não são do poder público. Então eu acho que é isso. O prêmio Carolina Bori para mim serviu como uma grande reflexão também em relação a essas desigualdades e o quanto a gente precisa de ações afirmativas no campo da produção, de conhecimento científico.
Ações afirmativas para mulheres negras no campo da produção, do conhecimento científico, sempre ações interessadas e não somente esse reconhecimento e falar das estatísticas, ok… nós já sabemos…mas agora vamos partir para uma ação efetiva e essa ação efetiva tem que se pensar qual a melhor forma de ação afirmativa, além de editais, né, que sejam editais específicos para estimular a produção de conhecimentos sobre relações étnico, raciais e sobre a questão da África, as questões africanas, que é a forma de fazer o link com alteração da LDB pela lei 10.639 de 2003, a resolução, a diretriz que decorre dessa legislação e que faz também essa orientação para o Ensino Superior.
Nós já tivemos editais nas agências de fomento, muito poucos focando ‘África’ em específico e isso tudo acabou. Mas agora eu acho que a gente precisa de uma retomada e mais ampla. Além de termos pesquisadores e pesquisadoras negras nos conselhos, nas agências de fomento, que faz a seleção dos projetos também, isso tem que ser feito de ação afirmativa, não dá só para falar, “olhar a indicação que as agências de pesquisa fazem, indica os nomes, os nomes mais indicados são aqueles que vão para esses lugares…” Não, você tem que ter ação afirmativa aqui dentro. E estimular, que dentre os nomes indicados tenha nomes de pesquisadores e pesquisadoras negras também com os critérios que científicos que são estabelecidos. Nós temos pessoas com esses critérios dentro desses critérios, mas nem sempre esses nomes são os nomes mais indicados e quando são indicados, não são também aqueles que recebem o maior número de indicações, né… quando indicados por pequenos grupos, melhor dizendo.
Você publicou os infantis: “Betina” (2009), “O menino coração de tambor” (2013). Publicou também “Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra” (2006), que foi fruto da sua tese. Como é o seu processo de escrita?
Eu recebi um convite da Editora Mazza, que é de uma querida amiga, Maria Mazarello Rodrigues, e que é a primeira editora no Brasil que focou a produção de livros de literatura de pessoas negras. A Mazza tem um histórico no Brasil que é maravilhoso. E ela é uma amiga querida, uma pessoa que eu respeito muito. Ela propôs que eu escrevesse livros de literatura infantil. O primeiro deles é a Betina, que existe. Em todos os dois livros os personagens centrais existem. A Betina é uma cabeleleira negra, de Belo Horizonte, que fez escola neste campo da estética negra em BH. Ela foi uma das pessoas que eu entrevistei para minha tese de doutorado e ela tem uma trajetória, como todas as outras, muito forte, muito marcante. E a Mazza conhece muito a Betina e queria muito fazer uma homenagem a Betina e me instigou a escrever um livro de literatura infantil inspirado na Betina. Não foi uma tarefa fácil, nunca tinha me pensado escrever um livro para crianças, embora eu goste muito de literatura infanto-juvenil. E eu fui e pensei o seguinte – eu não tenho filhos, não tenho filha – mas pensei o que eu gostaria que minha filha tivesse na escola… foi assim que eu pensei a história do livro e pensei também em escrever algo que seja afirmativo – eu sempre tenho insistido nessa tecla…algo que fale dessa nossa potência, da nossa beleza, da nossa sabedoria, que não seja algo que é que seja só no campo da denúncia, embora o campo da denúncia sempre vá ser importante para nós, mas eu queria também trazer algo que fosse afirmativo para essas meninas, pensando em mim quando menina negra também, e pensei muito na minha mãe, na minha família, nessa dimensão da ancestralidade…a Betina falava muito da avó dela na entrevista dela e foi assim que eu construí a narrativa do livro, as personagens…
“[…] Eu não chegava ali sozinha. Porque nós não chegamos sozinhos em lugar nenhum. […] Por que ficar pedindo benção aos ancestrais? A gente pede benção aos ancestrais em um reconhecimento de que, na hora que a Nilma fala, […] fala tanta gente que não pôde falar, tanta gente que foi silenciada, violentada.”
E o “Menino Coração de Tambor” também foi outro desafio que a Mazza me fez, de uma homenagem a Evandro Passos, que é um músico bailarino, ativista em Belo Horizonte, de repercussão internacional, que faz trabalhos com crianças deficientes, crianças em situação de risco. Ele faz trabalhos com a dança afro, com muitas pessoas…o Evandro tem um trabalho libertador, emancipatório com a dança afro… ele não é só um bailarino no sentido da beleza que significa competência artística, ele é ator e tudo mais. E então eu também me inspirei pensando em como eu vejo a percussão na nossa vida, na vida das pessoas negras e como eu vejo e ligo sempre a imagem do Evandro a uma percussão muito pungente, né, o atabaque e som do coração… E como que o atabaque inclusive esse som do coração ele pode ser trabalhado de forma a acalmar a gente… dependendo do toque, do som, assim como fazer com que a gente fique mais ritmado também…dependendo do toque, do som. Então eu construo o “Menino Coração de Tambor”, porque eu olho para o Evandro Passos e vejo que ele é alguém que traz no seu coração esse encantamento, sabe? Pela arte negra, pela cultura negra, e assim eu construo um pouco na história dele de Diamantina, do pai, que também lidava com a música e eu vou construindo a narrativa e as personagens…
E foi assim que esses livros surgiram. E eu sempre penso que eu gostaria que as crianças negras lessem na escola e mais, que elas conhecessem pessoas negras que estão aqui entre nós. E que possam ter contatos com a Betina, com Evandro. E aí vem a parte de uma divulgação também do livro… os dois livros circularam pelas Escolas Básicas, com o teatro, a Betina já foi falar em um dos lugares, o Evandro também, fora do Brasil… então acho que isso é, eu acho que é o nosso papel, o meu papel… e essa dimensão de que essa ancestralidade está em nós. E que o conhecimento que nós produzimos hoje no presente ele vai ser sempre uma releitura do conhecimento ancestral, da sabedoria ancestral, ele é uma releitura, nas condições que nós temos, na dinâmica do tempo que nós vivemos, mas a ideia dele vai ser sempre de fazer com que as pessoas se emancipem e fazer com que as pessoas acreditem no seu potencial para mudar.
OBRAS DA AUTORA
SEM PERDER A RAIZ – CORPO E CABELO COMO SÍMBOLOS DA IDENTIDADE NEGRA
O cabelo é analisado na obra de Nilma Lino Gomes não apenas como parte integrante do corpo individual e biológico, mas, sobretudo, como corpo social e linguagem, como veículo de expressão e símbolo de resistência cultural. É nessa direção que a autora interpreta as ações e atividades desenvolvidas nos salões étnicos de Belo Horizonte a partir da manipulação do cabelo crespo, baseando-se nos penteados de origem étnica africana, recriados e reinterpretados, como formas de expressão estética e identitária negra. A conscientização sobre as possibilidades positivas do próprio cabelo oferece uma notável contribuição no processo de reabilitação do corpo negro e na reversão das representações pejorativas presentes no imaginário herdado de uma cultura racista. (Kabengele
Munanga, professor titular do Departamento de Antropologia da USP)
EDUCAÇÃO E RAÇA – PERSPECTIVAS POLÍTICAS, PEDAGÓGICAS E ESTÉTICAS
Anete Abramowicz, Nilma Lino Gomes (Organização)
Integrante da Coleção Cultura Negra e Identidades, este livro mapeia um dos temas educacionais mais importantes da atualidade: as relações étnico-raciais na educação. Os autores refletem sobre a diversidade étnico-racial dentro da sociedade, da universidade e da educação básica, por meio de opiniões, interpretações e relatos de pesquisas sobre o tema. Como conciliar raça, educação e nação? Quem é o “Outro” na educação? Como se constitui o “Outro” no processo de produção das identidades? O que significa a experiência racial? Quais as possibilidades teóricas e práticas de pensar a realidade social a partir da ideia de raça? Como estabelecer a relação entre escola, currículo e relações étnico-raciais? Essas são algumas das questões analisadas nesta obra fundamental para aqueles que pretendem enfrentar o complexo debate sobre a diferença, as desigualdades e as redes sociais sob a perspectiva racial.
LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRA NA PRÁTICA PEDAGÓGICA
Iris Maria da Costa Amâncio, Miriam Lúcia dos Santos Jorge, Nilma Lino Gomes
Integrante da Coleção Cultura Negra e Identidades, este livro propõe ao docente uma postura pedagógica mais responsável, que privilegie o diálogo intercultural e supere preconceitos e estereótipos. Para isso, as autoras mostram ao professor e à professora as contribuições das Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. O universo literário africano como ferramenta para a efetivação da Lei nº 10.639/03 é o cerne deste livro que parte da necessidade de uma educação da diferença para apresentar aos leitores quais são as pesquisas que caminham nesse sentido no campo educacional e chamar a atenção para a importância de investir na educação como direito social.
Até quando os cursos de Pedagogia e de licenciatura continuarão negando ou omitindo a inclusão do conteúdo da Lei nº 10.639/03 nos seus currículos? O que fazer diante das lacunas que comprometem a implantação dessa Lei?
Essas são algumas das questões tratadas neste livro que busca analisar como têm sido os cursos de formação inicial de professores quando o assunto é a discussão sobre África e questão afro-brasileira.
EXPERIÊNCIAS ÉTNICO-CULTURAIS PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Nilma Lino Gomes, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (Organização)
Pesquisadores nacionais e estrangeiros projetam suas interpretações sobre uma questão que está no centro das atenções de grupos de militância, estudiosos e políticos: a diversidade étnico-cultural. Dirigido de maneira especial aos professores e à sua formação, este livro é indispensável para o debate sobre a educação e os processos de busca de identidade, nos quais estarão sempre presentes as tensões, os conflitos e as negociações entre os semelhantes e os diferentes.
AFIRMANDO DIREITOS – ACESSO E PERMANÊNCIA DE JOVENS NEGROS NA UNIVERSIDADE
Aracy Alves Martins, Nilma Lino Gomes (Organização)
As políticas de Ações Afirmativas, dentro das quais se insere o Programa Ações Afirmativas na UFMG, apresentado e discutido neste livro, exigem uma mudança de postura do Estado, da universidade e da sociedade de um modo geral em relação à situação de desigualdade social e racial vivida historicamente pelo segmento negro da população brasileira. A concretização da igualdade racial e da justiça social precisa deixar de fazer parte somente do discurso da nossa sociedade e se transformar, de fato, em iniciativas reais e concretas, aqui e agora.