Qual conselho você daria para os professores que estão lidando com desafios de inclusão, hoje?
Eu não daria conselhos, mas, como farei aqui, destacaria algumas situações que fazem parte da minha história como professora e que podem fazê-los pensar a respeito. Uma delas, e a mais desafiadora, é a de que é nosso dever receber os alunos nas nossas salas de aula, tais quais eles são, sem a pretensão de predefini-los ou redefini-los, por este ou aquele atributo. É nosso dever hospedá-los e respeitá-los nas suas intenções, curiosidades, pontos de vista sobre quaisquer conteúdos de ensino. Deixá-los expressar o que já sabem e dizer o que querem saber mais; fazer perguntas, expor suas ideias, soluções. A criança, o jovem são pesquisadores natos! Como aquele bebê que põe o dedinho na tomada…
O ambiente escolar, a sala de aula, como espaços de convivência e de cooperação precisam tratar naturalmente disciplinas curriculares, sem aquelas tensões e uniformizações de respostas, competências e habilidades que visam atender às exigências das avaliações nacionais e internacionais.
Todos os alunos trazem para a escola os seus saberes, capacidades. E sempre haverá ganhos, quando não forem sujeitados a dar respostas tidas como as únicas e esperadas para atestar estritamente se aprenderam ou não, um conteúdo curricular. Todos temos o direito de testar o mundo que nos cerca e a criança, o jovem, especialmente, são afeitos a descobertas, invenções que os professores têm a obrigação de ofício de acolher e de valorizar.
A escola inclusiva trabalha assim, sem comparar as aptidões dos alunos para esta ou aquela disciplina, sem definir quem consegue ou não realizar uma atividade, resolver um problema. Ser livre para aprender é poder expressar o que se entendeu pelo que se conseguiu buscar a sós ou com outrem; é poder expressar esse conhecimento das mais variadas formas. Essa liberdade é fruto de possibilidades que oferecemos na família e na escola, desde cedo, às novas gerações, exatamente para que elas não aprendam a se submeter e, então, fiquem ao Deus dará. Com tudo isso, quero dizer que educar para uma sociedade inclusiva, democrática é nossa tarefa de pais e professores. Somos educadores e recai sobre nós essa responsabilidade. Então pergunto: estamos, de fato, fazendo o nosso papel? Eu escrevi um livro recentemente. Ele se intitula “A escola que queremos para todos”. Nele procuro detalhar como trabalhamos de modo a propiciar um ambiente escolar inclusivo. Muitos professores têm me procurado para dizer que uma educação para todos, que não diferencia o ensino para alguns, adaptando conteúdos curriculares, facilitando atividades e outras formas de discriminação, é o modo mais natural e o mais fácil de se ensinar. E eles parecem ter entendido bem a lição… Outros professores do ensino básico com quem conversei sobre o livro, referiram que se surpreenderam com seus alunos, ao darem respostas autênticas às atividades apresentadas para estudar um determinado conteúdo. O ambiente de trabalho livrou-se das tensões anteriores, quando a intenção era que todos dessem chegassem às mesmas respostas. As relações na sala de aula mudaram muito e para melhor, disse-me uma das professoras que me procuraram.
Com tudo isso, quero dizer que educar para uma sociedade inclusiva, democrática é nossa tarefa de pais e professores. Somos educadores e recai sobre nós essa responsabilidade. Então pergunto: estamos, de fato, fazendo o nosso papel?
Uma escola inclusiva não tem um único livro indicado para o aluno aprender, reproduzindo o que nele se encerra – um livro que o “bom aluno” tem de decorar, sem dar sentido ao que nele lê. Nas salas de aula, na biblioteca, essa escola dispõe de muitos textos de estudo, contos, histórias e disponibiliza-os livremente a todos.
Aprendi, na minha trajetória educacional, o que está nas bases legais da inclusão no Brasil: a educação é direito de todos e esse direito deve visar o desenvolvimento pleno da pessoa. Ele será efetivado mediante o acesso aos mais elevados níveis de ensino, segundo a capacidade de cada um. (Constituição Federal de 1988). Por esse preceito, é dever da escola e da família garantir o direito à educação de todos, indistintamente. O direito à educação não define uma média de conhecimento a ser alcançada por um aluno ou turma. A escola inclusiva, portanto, está definida pela nossa legislação, o que não é comum a todos os países!
Eu percebi desde os primeiros anos de magistério, que os alunos em geral, não encontram sentido na grande maioria dos assuntos que estão estudando nas escolas. Uma criança me disse abertamente:…eu não tenho interesse em estudar a maior parte das coisas que a escola ensina; porque tenho de responder do jeito que a professora quer nas provas, nas lições. Eu tenho outras respostas e ideias para responder às mesmas perguntas. Às vezes, tenho até mais coisas a dizer do que as que a professora exige. Mas acho melhor eu não ser do contra e decorar a matéria para a prova. Mais tarde, quando eu tiver possibilidade de pensar sozinho, eu penso e digo. Eu, então, lhe alertei:…tome muito cuidado, porque você pode se viciar nesse seu jeito de resolver a situação e acabar perdendo a confiança naquilo que você pensa, diz e faz. Ele pareceu preocupado com o que eu lhe disse. O menino só tinha 11 anos e acrescentou: é verdade. Eu posso me acostumar a dizer só o que os outros pensam e acham por aí.
Tenho ainda muitas passagens que vivi e que hoje eu reconheço como pertinentes ao que se espera de uma professora ou professor inclusivos. Quero me referir à autenticidade que devemos ter no desempenho de nossas funções e ser autêntico tem a ver com o modo peculiar de cada um de nós ver, compreender as coisas, o mundo que nos cerca e de dizer sobre tudo isso. Mas de dizer por nós mesmos, de modo unívoco e jamais definitivo. E como chegamos a essa compreensão de que ela não é definitiva, que se multiplica em outras, ilimitadamente, no transcurso de nossa existência? Complicado, né? Acredito que somos seres que não se repetem e mais, seres que vão se transformando no decorrer de encontros, de momentos de transformação que nos acontecem. Eis aí uma outra maneira de entender como ser um professor inclusivo, requisito sem o qual não conseguimos fazer frente aos desafios da inclusão. Esse modo de ser eu aprendi com as filosofias da diferença, com Deleuze, Guattari, Tadeu da Silva, Pierucci, Foulcault e tantos mais. Tais estudos me ofereceram e ainda contribuem para que eu possa defender meu ponto de vista inclusivo, diante de tantas provocações que outras formas de entender o sentido da educação que se cruzam por aí. Ao longo de meus estudos e do tempo em que tenho exercido meu trabalho como professora, desde os meus primeiros anos, no ensino básico, até este momento, no ensino superior, defendo que toda escola passa a ser o que é, uma instituição de ensino, quando institui o seu próprio projeto pedagógico e político. A escola inclusiva não é uma exceção. A elaboração de um projeto pedagógico acompanha o entendimento que defendo sobre a singularidade de cada pessoa de ver as coisas, de entendê-las, mas sempre… provisoriamente. Tal como um ser humano, o projeto pedagógico, ele é diferente de qualquer outro, de escola para escola. Não se repete, é singular, multiplica-se a cada acontecimento que o faça retornar diferentemente, transforma-se indefinidamente, enquanto está em vigência. Já é tempo de reconhecermos e trabalharmos no sentido de implementar, de fato, uma escola brasileira inclusiva. Eu tenho estado impaciente, porque está demorando muito para que as mudanças trazidas pela inclusão escolar sejam compreendidas e aconteçam na nossa escola.
Acredito que somos seres que não se repetem e mais, seres que vão se transformando no decorrer de encontros, de momentos de transformação que nos acontecem. Eis aí uma outra maneira de entender como ser um professor inclusivo…
O Brasil tem as condições legais (Constituição, LDB) ideais para fazer essa reviravolta. Reflito muito sobre a dificuldade de assumirmos essa virada inclusiva da nossa escola, que a faria mais justa, democrática e a nossa, seus professores, para que nos tornemos mais conscientes do papel que representamos hoje e no futuro de nossos alunos, de nosso país. Tento compreender o que nos faz tão arraigados a um ofício do qual não nos sentimos mais tão satisfeitos. Queremos o respeito da sociedade, dos governantes, precisamos recuperar o valor, a alta consideração que tivemos em outros tempos. No meu modo de entender, a maioria das pessoas que fazem parte da escola, em todos os seus escalões e mais diretamente no nosso, de professores, não estão satisfeitos com a escola que temos hoje e com o seu formato e funcionamento. Todos sabemos o que estamos passando no momento, no ensino público e particular, com a invasão das empresas de educação e seus pacotes de ensino, com a ênfase na aprendizagem dos alunos, com vistas a melhorar as notas dos países, nas avaliações internacionais, a condução do processo educacional que transforma o diretor em gestor, o professor em instrutor, o aluno em consumidor e a aprendizagem em mercadoria. Penso que nós, professores, reconhecemos esse quadro situacional e suas mazelas, mas, ao mesmo tempo, nos sentimos intimidados para trilhar outros caminhos educacionais que possam nos levar a confrontar a escola que temos com uma escola para todos, inclusiva e garantidora do direito incondicional à educação.. Faz 60 anos que eu sou professora. Eu comecei a dar aula na década de 60 e permaneci nos cinco primeiros anos em uma sala de aula dita seriada – tinha crianças de todas as idades. Eu aprendi a dar aula assim. E não sei fazer de outro jeito. Naquele tempo não tinha ainda me graduado em Pedagogia, nem estudado as filosofias da diferença, mas o contato, a aproximação que sempre tive com meus alunos e com as escolas me diziam que a tendência pela massificação do ensino era a meta dos sistemas educacionais. Por outro lado, a diferença de cada aluno estava patente para mim em seus diferentes modos de aprender, de dizer de si e do mundo eram personalíssimos e intransferíveis. Há sempre um ponto de partida, ou seja, o que um dado conteúdo significa para alguém, fruto de suas aproximações, do entendimento, importância, sentido, interesse de cada pessoa. Esse, a meu ver, sempre foi o meu ponto de partida para ensinar. Não adianta você dizer para uma turma de alunos de onde vem a eletricidade, se é isso, se é aquilo… Você tem que aguardar a criança fazer essa imersão em si mesma com relação ao assunto, como ponto de partida. Na minha percepção, nem os professores, antes de ensinar um dado conteúdo, fazem, eles próprios, essa mesma imersão. Vem tudo pronto nos livros, manuais, nas apostilas. A universidade nos faz professores do mesmo jeito que aprendemos a ser com os alunos do ensino básico. Nas disciplinas da graduação e da pós-graduação em Educação, onde atuo, percebo que há uma pretensa liberdade de analisar os textos, as questões e de trazermos assuntos pertinentes ao que estamos estudando nas aulas. O tempo reservado para os estágios é desproporcional ao das demais matérias do currículo. E outras peculiaridades persistem levando-nos a concluir que não temos uma formação que nos encaminha para uma prática, que revele atualização e compromisso com novos propósitos e projetos educacionais, como é o caso da inclusão em um mundo que se pretende sustentável. Entre os Sete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU está a Educação, cujos fins visam fazer dos alunos agentes de transformação da sociedade.
A escola inclusiva se encaixa neles, perfeitamente.
Outro ponto que quero destacar refere-se à avaliação escolar. A escola inclusiva é a escola que prevê a autoavaliação da aprendizagem do aluno conjugada à autoavaliação que o professor faz do seu modo de ensinar. Elas se combinam, se esclarecem entre si para chegarem a resultados, sempre provisórios, mas que revelam, pouco a pouco em que direção ambos estão avançando ou precisam mudar de rota. Por que o professor tem sempre a palavra final sobre o aproveitamento de cada aluno? Por que é o aluno o único a ser avaliado no processo escolar?
Na escola inclusiva, qualquer item curricular tem para cada aluno uma história específica de entendimento e uma relevância pelo assunto tratado, que nós, os professores, temos de acolher. A ascendência e verticalização do papel do professor e do papel do aluno se anulam, quando se admite a emancipação intelectual, própria de todo ser humano. Saber mais, não é ser mais. Daí a avaliação educacional ser uma combinação de julgamentos e de entendimentos que garantem a ambas as partes a possibilidade de não ser válido o poder onipotente do avaliador.
Quanto à didática, gostaria de recomendar um vídeo que está disponível no Youtube e que se refere a uma aula que dei para um grupo de alunos da USP. Nesse vídeo eu deixo claro que não existe uma didática (no sentido que a entendemos na maioria das interpretações sobre essa disciplina) quando se trata de uma educação para todos. O aprender e o ensinar são ações locais, circunstanciais e individualizadas. Como, então, concordar e com um método de ensino que agora está na moda, defendido em artigos, palestras e cursos sobre educação inclusiva – o Desenho Universal da Aprendizagem? A aprendizagem teria um desenho universalizado ou universalizável? Sabemos que há tantos desenhos para se ensinar e tantos, para se aprender um dado conteúdo quanto pessoas que o ensinam e o aprendem, nos diferentes momentos em que esses processos acontecem.
Outro ponto importante, quando queremos entender as mudanças trazida por uma educação inclusiva refere-se à escala hierarquicamente constituída pelos que atuam diretamente nas escolas e os que estão fora delas. O poder, nos estudos foucaultianos, não se impõe unicamente de modo onipotente. Ele também pode ser compartilhado, onipresente. Na sala de aula, o professor repete com os alunos o mesmo assujeitamento a que ele próprio se submete em relação a todo um grupo de pessoas que compõem o organograma hierarquicamente constituído para definir o poder dos sistemas de ensino. E no qual são muitos os locados acima dele! A cultura escolar é de opressão e de submissão dos mais baixos pelos mais altos postos da hierarquia escolar e educacional. Por onde, então, começar? Com que táticas driblar esse poder, a não ser começando pela própria sala de aula? A escola inclusiva, por seu caráter eminentemente democrático, mantem-se e se aprimora pelo exercício de um poder democraticamente exercido nas situações as mais corriqueiras e as mais relevantes da sala de aula e dos enredos que nela se produzem e se reproduzem entre o professor e os alunos e os alunos entre si. Esse exercício, a meu ver, é essencial para que se possa introduzir as inovações trazidas pela inclusão escolar. É uma conquista gradual, mas que se enraíza na educação em todos os seus níveis. Como verdadeiros rizomas – aquelas raízes rasteiras das gramíneas, que vão serpenteando, se esparramam e invadem todo o terreno, que, no caso, é o próprio sistema educacional. Essa invasão gradativa faz com que o poder seja conquistado por caminhos aparentemente desordenados, mas fortes o suficiente para garantir posições outrora impossíveis de serem galgadas e que atingem e enfraquecem os escalões mais altos da organização escolar. A conquista de uma escola para todos começa, então, nas salas de aula, com os professores e adquire resistência quando provinda do entrelaçamento e da horizontalidade de forças que vêm da base e que, portanto, são as mais comprometidas e envolvidas nas mudanças de todo tipo, dentro e fora das escolas.
Os professores, no geral, parecem que se sentem impedidos de enfrentar o poder que está acima de sua função. Eles agem assim, quem sabe, porque conhecem a força que resulta da sua própria onipotência frente aos alunos de sua turma. Então se recolhem.
Ao longo do seu trabalho, você menciona o conceito de Jacques Derrida de Hospitalidade. Em sua palestra do TEDx, cita que a hospitalidade “se dá ao outro antes que ele se identifique, antes mesmo que ele seja posto ou suposto como sujeito de direito”. Você pensa que uma sociedade incondicionalmente hospitaleira é possível?
Eu não apenas acredito como me empenho para conseguirmos chegar lá. A inclusão aponta para um avanço, um marco civilizatório de grande relevância, porque se fundamenta na subjetividade, na singularidade humana, indo além das lutas identitárias, tão fortes em nossos dias. Embora não se oponha a esses movimentos, a inclusão, tem como fundo a diferença em si de cada um de nós, que não é comparada, representada, medida. A diferença em si, questão de base da inclusão, é multiplicativa, está sempre devindo, e se modificando. A diversidade humana, razão das lutas identitárias, tem a ver com o diverso, com diferenças externas das pessoas, que podem ser mensuradas, ordenadas, agrupadas segundo um ou outro atributo. Derivada das lutas identitárias, há ainda a possibilidade da normalização, que elege uma identidade, como sendo a “normal”, aquela que tem todas as características desejáveis, ou seja, “a” identidade e não “uma” dentre muitas. Esse processo define a identidade que tem todos os atributos naturais, positivos, como ocorre com o aluno ideal, por exemplo, é visível na escola; a inclusão se opõe a essa eleição arbitrária de um modelo identitário e com isso, vai contra a todo o poder que elege uma identidade, a partir da qual as demais se hierarquizam. A inclusão não se faz por inserção de identidades diferentes em um dado grupo, ela não rotula, não captura, não hierarquiza e nem define quem é o outro por atributos externos. Na escola, os alunos não são incluídos por serem deficientes, indígenas, brancos e quaisquer outros conjuntos humanos passíveis de serem agrupados por características externas. A escola, em sendo inclusiva hospeda todos, indistintamente. Trata-se de um desafio, que a eleva ao nível de avanço da humanidade, do mundo civilizado. E enquanto não alcançamos esse patamar de compreensão da diferença em si de cada um de nós, nesse degrau de compreensão de nós mesmos e do outro, entender uma sociedade para todos, sem quaisquer formas de se agrupar pessoas por um dado atributo, ou por vários, é provocador e ao mesmo tempo exige paciência e muito trabalho. E assim temos caminhado, avançando pouco a pouco, mas decididamente contra o dito capacitismo e outras mazelas que persistem no caminho em direção a uma sociedade verdadeiramente democrática e para todos.
Então, respondendo a sua pergunta, há que se empenhar, diuturnamente para avançar, num projeto inclusivo de escola, de sociedade.
Espero que eu tenha podido esclarecer o que é diversidade e diferença em si, no contexto de uma sociedade para todos. Por tudo isso é que a escola inclusiva não escolhe seus alunos. Ela é incondicionalmente hospitaleira, no sentido que lhe atribui Derrida. Em outras palavras, a escola para todos não forma grupinhos dos mais capazes, dos que não conseguem acompanhar as tarefas; daqueles que sabem ler bem, daqueles que se dão bem com a matemática… E que são bons em história. Isso tem a ver com identidades fixadas num ou em outro atributo. Vem daí as pessoas buscarem um rótulo para se apresentarem e viverem em torno dele.
Por tudo isso eu tenho trabalhado sem descanso. Como professora, meu ofício é fazer dos mais novos, pessoas que consigam superar o que possa negar a nossa singularidade e seu valor, na sociedade dos humanos.
Tem três eixos que você costuma falar muito, que são acesso, permanência e participação na escola. Você pensa que as escolas no Brasil têm se movido para atender a esses pilares?
Temos caminhado muito devagar nesse sentido. Eu tinha a esperança de que no governo atual o MEC apresentasse uma proposta educacional compatível com avanços propostos pela inclusão e garantisse que esses três eixos: acesso, permanência e participação fossem, os privilegiados para todos os alunos nas nossas escolas. Porque esses três eixos não se aplicam exclusivamente a alunos da Educação Especial, mas a todo o sistema educacional.
Na Política Nacional de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (MEC/2008) o Atendimento Educacional Especializado – AEE é um serviço cujo professor tem a incumbência de remover barreiras físicas, atitudinais, comunicacionais e linguísticas que impedem o acesso, permanência e a participação dos alunos da Educação Especial nas escolas comuns e demais ambientes em que circulam. O AEE segue o que foi proclamado pela Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, em 2007 e adicionada à nossa Constituição, em 2009. Mas atenção para o fato de que essas barreiras não incluem as que se referem ao aprendizado de conteúdos escolares! Que fique claro que retirar barreiras de acesso aos tópicos curriculares não são da incumbência do professor de AEE. Adaptações curriculares, facilitação de atividades e outras medidas referentes aos processos de ensino e de aprendizagem não são de sua alçada e competência. Portanto, planos de ensino individualizados – PEI, flexibilização curricular, e outros arranjos que infelizmente temos observado com frequência nas escolas, assim como professor de apoio para garantir o aprendizado de alunos da Educação Especial, métodos específicos para alfabetização e outros mais não cabem nas atribuições do professor de AEE e não são da incumbência da Educação Especial. Na escola inclusão o ensino é atribuição exclusiva do professor responsável pela turma ou disciplina.
As diretrizes curriculares também?
Como pretendi nessas respostas, identidade, diferença, quem é o outro, inclusão, são problemas sociais, mas, ao mesmo tempo, um problema pedagógico e curricular. Esse outro, que se expressa por múltiplas dimensões, que se expressa e é representado por diversas maneiras, tantas quantos forem os atributos, os caracteres pelos quais possa ser identificado de fora.
O problema em torno dos princípios, temas e objetivos de ensino e aprendizagem apresentados no documento Base Nacional Comum Curricular da BNCC/MEC-2017, tem a ver com outros pontos conflitantes presentes nos processos de construção de textos educacionais, evidenciando a tensão entre o compromisso com a eficiência, a cultura empreendedora e o compromisso com a justiça social, a reflexão crítica e a atenção aos valores de inclusão, direitos humanos e sustentabilidade socioambiental.
Quanto aos conceitos de diferença, diversidade e inclusão utilizados nesse documento, considero que cabe a respeito um questionamento quanto ao entendimento dos princípios e diretrizes que orientam a discussão do currículo escolar, na perspectiva de uma escola brasileira para todos. Sobre a diversidade e a diferença, como já comentamos anteriormente, é necessário entender que são conceitos de natureza distinta que, embora não sejam antagônicos, podem assumir perspectivas contraditórias ou opostas.
A diferença se furta a qualquer tipo de modelo, linearidade ou regra rígida ao pensar, quebrando com o conceito de ela que é externa ao ser. Como já nos referimos, a diferença não tem base em critérios de identidade e de semelhança e rejeita todo modelo pré-determinado do idêntico, do mesmo.
Essa discussão sobre a diversidade e as diferenças e sua interface com a elaboração de políticas e diretrizes educacionais precisariam estar presentes nas BNCC com a ênfase e profundidade desejáveis. Ainda há que se considerar o conceito de inclusão escolar, que não se resume à garantia da educação regular para estudantes da Educação Especial. Nessas propostas, orientadas pela BNCC e demais documentos, os Estados e Municípios precisam encontrar nelas, com toda a clareza e pertinência, o que representa um ensino para todos. A inclusão não se caracteriza apenas por iniciativas de professores ou gestores, por materiais pedagógicos e metodologias específicas, mas diz respeito à transformação dos sistemas de ensino para assegurar o direito de todos/as aqueles/as excluídos na educação. Um nível de mudança que não se alcança a partir de movimentos que visam uma dada identidade. Requer orientações mais precisas para que a nossa educação consiga combater a formação das desvantagens e privilégios de alguns e transformem as intersecções pobreza, gênero, raça, etnia, deficiência, identidade de gênero e outras em elos que auxiliem identificar e interromper a produção das exclusões.
A escola ensina, mas a aprendizagem, ela não controla. Uma base curricular instituída nacionalmente não garante em si o direito à aprendizagem de cada aluno. O direito de a pessoa aprender implica no que para ela tem sentido e não o que tem sentido para escola.
Como já tratamos mais acima, as competências e habilidades curriculares, como definidas na BNCC têm a ver com um sujeito universal. Ocorre que somos sujeitos singulares, que não se repetem…Então, como avaliar por um sujeito universal, um sujeito que é singular?
A escola ensina, mas a aprendizagem, ela não controla. Uma base curricular instituída nacionalmente não garante em si o direito à aprendizagem de cada aluno. O direito de a pessoa aprender implica no que para ela tem sentido e não o que tem sentido para escola.
A gente está andando na contramão da história… Ou melhor, não estamos andando na contramão da história. Nós estamos andando para frente. Estamos vivendo em tempos pós-modernos, mas ainda educamos nossos jovens e crianças por modelos delineados, padrões, ídolos, influencers.
Tudo isso é muito complexo e alimenta ebulições muito centralizadas/centralizadoras no momento. Se as pessoas estivessem todas reunidas no sentido de provocar mudanças sociais mais amplas, como a inclusão, por exemplo, quem sabe será teríamos feito mais, em menos tempo.
Poderíamos dizer que se trata de uma questão filosófica?
Eu não sou uma filósofa – mas eu tenho necessidade de estudar filosofia, entender filosoficamente o que está por detrás de todos esses movimentos, para poder ter com o que explicar o que está na base da inclusão. Porque a filosofia dá conta de coisas que a ciência não dá. Não que a ciência seja menor, mas cada uma dentro da sua condição. Por exemplo, a filosofia da educação brasileira está comprometida com uma visão crítica de educação. E a inclusão é uma proposta pós-crítica. É difícil para nós fazer a defesa da inclusão em um ambiente educacional que converge para uma concepção filosófica diferente. Compreende? Por exemplo, a nossa filosofia da educação é uma filosofia da educação que está comprometida com uma visão crítica de educação e não pós-crítica, é uma visão crítica de educação tem a ver com essas identidades dentro da sala de aula, esses modelos todos separados. É duro, isso é. Há muita gente que faz isso. Não é questão de ser contra, é demonstrar como eu falei no início, que a inclusão ultrapassa o entendimento que nós estamos tendo hoje do que deve ser uma sociedade democrática.
Infelizmente, nós estamos vivendo um período muito duro, porque é muito mais fácil você explicar coisas que não vão a fundo do que explicar aquilo que, de fato, vai ocasionar um avanço civilizatório. Sim, precisamos da filosofia.
Inclusão é sobretudo sobre respeito?
A inclusão implica o respeito à dignidade humana, o respeito a direitos individuais e coletivos que conquistamos e que não têm retorno. É respeito à dignidade de cada ser e não a características que esses seres lançam mão para serem considerados seres dignos. Nós não precisamos ter o reconhecimento do nosso gênero, por exemplo, para sermos dignos como pessoa. Isso que é importantíssimo entender do movimento inclusivo e é muito difícil porque também vai de encontro sabem a quê? A tudo aquilo que de certa maneira interessa ainda ao mundo e à escola, principalmente de se trabalhar especificamente com determinados grupos a partir de determinadas características. E isso passa até a ser um mercado muito vantajoso para algumas pessoas… “Eu só trabalho com autistas. Eu me especializei em pessoas com deficiência intelectual. Eu só trabalho com a cultura negra, com o feminismo. E a pessoas por detrás desses rótulos? Reduz-se a quê?
O que interessa no movimento inclusivo é o que essa pessoa é – um ser que não se repete, que se multiplica e incomparável.
Acho que o respeito nos é devido pelo que somos – seres unívocos e membros de uma sociedade que nos considera como pessoas dignas de respeito.
Para você, o que é o sujeito? Quais são essas diferenças infinitas e como a gente pode lidar melhor com elas?
Eu não me refiro a um ser humano como um sujeito, apenas. Eu me refiro a cada ser humano. A esse ser que tem que ser melhor compreendido na sua dimensão mais ampla, mais complexa do que qualquer marca identitária – a sua subjetividade. E que o torna, portanto, um ser muito mais, muito maior do que qualquer outra característica/s que têm sido utilizadas para identificá-lo. Os seres humanos não são representáveis, não há um modelo de um ser humano. Não há um modelo porque os modelos têm a ver com comparações. Os modelos, repito, têm a ver com características externas e ser humano é esse ser que é muito difícil de ser capturado pelo outro, então não há como você capturar um ser para definir. Porque ele está sempre se multiplicando, ele está sempre se diferenciando.
Isso tem muito a ver com a filosofia nômade, as filosofias da diferença, como a que se aprende com Gilles Deleuze, com Félix Guattari e outros. Nós não trabalhamos entendendo a humanidade como sendo plural, porque plural tem a ver com o diverso. Uma sociedade plural é a sociedade que muita gente está querendo, de qualquer maneira, reconhecer ou que seja reconhecida, mas dá na mesma, porque ela continua sendo uma sociedade que admite modelos, que admite um assujeitamento do próprio sujeito em relação à sua identidade, às suas características externas. É complicado, mas é preciso que a gente deixe bem claro o que é a inclusão. É maravilhoso e é tão simples, né? Muito mais simples do que você ficar em lutas por identidade.
Como a gente fala também de minorias oprimidas, você não acha que essas lutas são uma luta para chegar em um lugar e exigir respeito?
Acho que o respeito nos é devido pelo que somos – seres unívocos e membros de uma sociedade que nos considera como pessoas dignas de respeito. As lutas das minorias oprimidas têm palco nas escolas inclusivas, mas num escopo mais amplo em que é preciso aprender a ver no outro, não apenas por determinadas características físicas, históricas e culturais. Alguém que está ali, que não é a repetição de ninguém, que não tem nada que o faça assemelhar-se a algum modelo que a gente possa criar através de uma diferença externa.
Você acha que é possível educar para o respeito ao outro?
Acredito, pela minha própria experiência, que é possível educar para o respeito e mais, que é um compromisso do educador ensinar, desde os primeiros anos escolares. os alunos a viverem uns com os outros, compartilhando o tempo escolar e introjetando esse comportamento, essa possibilidade, esse modo de viver suas alegrias, dificuldades, tarefas, conhecimentos, materiais de estudo e de trabalho escolar, enfim, tudo o que se apresenta naturalmente na escola, nas salas de aula, corredores, pátio, refeitório… envolvendo um outro.
OBRA DA AUTORA
INCLUSÃO ESCOLAR: O QUE É? POR QUÊ? COMO FAZER?
Maria Teresa Eglér Mantoan
Escrito por uma das maiores especialistas em inclusão escolar no Brasil, esta obra aborda o assunto de maneira clara e didática. Baseando-se na legislação sobre o tema, Maria Teresa Mantoan explica o que é educação inclusiva, discute os passos necessários para implantá-la e ressalta suas vantagens. Livro fundamental para educadores que desejam saltar da teoria para a prática. A coleção: Coordenada por Ulisses F. Araújo, a Coleção Novas Arquiteturas Pedagógicas tem como ponto de partida atender às demandas e necessidades de uma sociedade democrática, multicultural e inclusiva, permeada pelas diferenças e pautada no conhecimento inter, multi e transdisciplinar. Para tanto, publica livros que ajudem os profissionais da educação a construir ambientes educativos inovadores, atentos a formas diferentes de organização dos tempos, espaços e relações na educação. O objetivo é auxiliá-los a incorporar novas linguagens e tecnologias na sua prática docente, bem como aplicar a ética nas relações humanas dentro e fora da escola.
A ESCOLA QUE QUEREMOS PARA TODOS
Maria Teresa Eglér Mantoan e José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti
As páginas deste livro são mesmo um convite à conversa. Por meio de diálogos, os autores propõem reflexões em torno de perguntas que são comuns no campo da educação inclusiva. Viver no mesmo tempo-espaço que Mantoan e Lanuti é uma alegria que se afirma na luta cotidiana por direitos, e este livro, a ferramenta imprescindível a todas as pessoas que se dedicam a construir a escola que queremos para todos, o mundo que queremos para todos.
Mariana Rosa
Jornalista, integrante do Coletivo Feminista Helen Keller, fundadora do Instituto Cáue e mãe da Alice. Estuda e pesquisa, de forma autônoma, a educação inclusiva e atua como educadora popular e mobilizadora.
TODOS PELA INCLUSÃO ESCOLAR – DOS FUNDAMENTOS ÀS PRÁTICAS
Maria Teresa Eglér Mantoan e José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti
Este livro comemorativo reúne textos de pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED) sobre suas experiências acadêmicas voltadas a uma educação para todos – inclusão escolar.