Saberes emancipatórios produzidos pelos negros e pelas negras e sistematizados pelo Movimento Negro […] Trata-se de uma maneira de conhecer o mundo, da produção de uma racionalidade marcada pela vivência da raça numa sociedade racializada desde o início da sua conformação social.
(Gomes, 2017)
O Movimento Negro brasileiro possui uma histórica e profunda trajetória marcada por conquistas que contribuíram significativamente para a formatação da sociedade atual. Ao longo dos anos, ativistas e organizações engajadas tem desempenhado papéis cruciais na luta contra a opressão e a discriminação racial que estruturam todas as relações sociais do nosso país.
O Movimento Negro, como explica DOMINGUES (2007), é caracterizado por ser um movimento social que luta contra a discriminação racial e tem como objetivo extinguir a exclusão e a marginalização que negros foram submetidos no sistema educacional, no mercado de trabalho, nos campos políticos e culturais. A bandeira de reivindicações e lutas desse movimento vai existir a partir da questão da raça e, por assim dizer, a valorização da identidade racial dos indivíduos negros. Neste sentido, o termo raça, foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em várias situações, o utiliza com um sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos, isto é, o conceito de raça ao ser utilizado com conotação política permite, por exemplo, romper com as teorias raciais que foram formuladas no século XIX.
E como tem sido a atuação no Movimento Negro no Brasil? A história de lutas e resistência do negro no Brasil não é uma história recente. Apesar de apresentar em sua trajetória descontinuidades, a atuação da população negra se apresenta desde o período escravagista, com o mais conhecido Quilombo dos Palmares, e esta mobilização atravessa todo o período colonial até desembocar no dia 13 de maio de 1888, e com a República promulgada, o Movimento Negro ganha novos contornos.
No fim do século XIX e início do século XX, temos uma presença das organizações dos “homens de cor”, através da atuação de organizações beneficentes, associações assistenciais, culturais e recreativas. Muitas dessas organizações eram vinculadas à Igreja Católica, e esses lugares funcionavam como um espaço de sociabilidade para os negros, visto que, em uma sociedade de hegemonia branca, os negros eram impossibilitados de frequentar determinados lugares. Não havia por parte dessas associações uma ideologia partidária, mas já denunciavam o racismo e a luta por uma sociedade mais igualitária, a partir de publicações de jornais vinculados às associações dos “homens de cor”, a denominada imprensa negra.
Durante o período do governo Vargas (1930-1937), nasce uma importante instituição do Movimento Negro, a Frente Negra Brasileira (FNB), sua fundação foi em 1931. A FNB tinha como objetivo central construir uma ideia nacionalista para inserir os negros ao mercado de trabalho, buscando com isso, a integração da população negra à sociedade que se emergia. A FNB acreditava que a inclusão do negro ocorreria mediante a uma postura de assimilação dos valores da cultura nacional hegemônica. À época, a FNB foi uma importante instituição de luta contra o racismo, com alto nível de organização, chegando a se transformar em 1936 em um partido político.
Entretanto, no ano seguinte, em 1937, com a instauração do Estado Novo todos os partidos políticos foram extintos, inclusive a FNB, e o Movimento Negro se viu em um processo de ruptura. Durante a vigência do Estado Novo houve grande e violenta repressão política, e o sistema não permitia o surgimento e a consolidação de qualquer movimento ou grupo político que visava se opor ao governo, denunciando as mazelas sociais vigentes àquela época.
Findado o período do Estado Novo, o Movimento Negro ressurge, em 1944, no Rio de Janeiro, surge o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado por Abdias Nascimento, a priori, o movimento tinha como proposta a formação de grupos de atores negros, porém, o movimento foi tomando outras formatações.
O TEN se transformou em um movimento político à frente de seu tempo, de vanguarda artística, que defendia o negro como protagonista no teatro, mas, sobretudo, visava o protagonismo do negro na vida política nacional, ressaltando e evidenciando o valor estético e político da negritude para superação e transposição das barreiras socialmente impostas à população negra.
No contexto do golpe militar em 1964, o TEN tem as suas ações reduzidas e em 1968 foi fechado e Abdias Nascimento segue para os Estados Unidos. Todas as iniciativas do Movimento Negro foram desarticuladas, apresentando temporariamente uma derrota. A questão racial foi banida pelos militares, havia por parte do governo militar a disseminação do discurso que no Brasil havia uma democracia racial, não havia racismo, e todos aqueles que discordavam eram estigmatizados e reprimidos pelas forças de segurança do governo militar.
Somente no fim da década de 1970 é que movimentos com bandeiras antirracistas se reorganizaram politicamente no interior do surgimento e impulsão dos movimentos populares, movimentos sindical e estudantil. É aí, então, que em 1978 surge o Movimento Negro Unificado (MNU), influenciado pela luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos e dos processos conflituosos de autonomia dos países africanos, sob a ideia do pan-africanismo e do afrocentrismo em detrimento ao eurocentrismo hegemônico.
O MNU se estabelece como um movimento de correntes ideológicas de esquerda e cria pontes de diálogos com outros movimentos sociais que buscavam denunciar outros temas relevantes para o equacionamento das mazelas sociais brasileiras, tais como: o movimento sindicalista, o movimento feminista, os movimentos dos centros urbanos etc. Era um movimento que tinha como foco de discussão e reflexão o entrelaçamento das questões relativas à classe e raça, e até mesmo questões acerca da sociedade capitalista e a perpetuação do racismo. O nascimento do MNU representou um momento histórico importante para a luta contra o racismo, pois, o movimento apresentou a proposta de unificar as reivindicações em diferentes níveis e eixos, em um único plano nacional, representando e aglutinando todas as bandeiras dos diversos grupos e organizações antirracistas, dialogando estrategicamente com grupos de outras bandeiras de reivindicações acerca das mazelas sociais do país, desta forma, o Movimento Negro acreditava no fortalecimento político de suas reivindicações.
A partir disso há um caráter revisionista do Movimento Negro acerca de tudo que remetia à comunidade negra, desde sua ancestralidade africana até a utilização da palavra negro como algo positivado. O Movimento Negro buscou ressignificar e disseminar, sobretudo entre os negros, a valorização da identidade negra. O movimento começa a rever e questionar o campo educacional com seu currículo eurocentrado, Zumbi é escolhido como símbolo de luta e resistência para o Movimento Negro, o dia 20 de novembro é eleito como o Dia Nacional da Consciência Negra, em detrimento do 13 de maio, que passa a ser um dia para denunciar a opressão racial.
Abdias Nascimento tornou-se um protagonista fundamental no novo panorama de lutas do Movimento Negro, ele se aproximou do marxismo e das lutas dos negros norte-americanos acerca dos direitos civis na década de 1970. Abdias despontou como um crítico contundente do mito da democracia racial que impregnava os discursos das classes dominantes no Brasil.
O ato público no Teatro Municipal de São Paulo, em 1978, marca e possibilita a criação de muitas organizações em diferentes estados do Brasil, o que possibilitou a difusão das ideologias do Movimento Negro. Em 1988, duas reivindicações do Movimento Negro são previstas no texto da constitucional: a criminalização do racismo e o reconhecimento da propriedade de terras de remanescentes de quilombos.
Em 1995 foi realizada em Brasília uma marcha em homenagem aos trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares. Era o primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso, que criou então um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, dando a partida nas primeiras iniciativas de ação afirmativa na administração pública federal.
No decorrer do século XX o Movimento Negro foca sua militância para a educação, reconhecendo nela a importância e seu lugar estratégico ao que tange à superação das tensões das relações étnico-raciais e a possibilidade de construção de novas sociabilidades. A partir desse momento denuncia a neutralidade do Estado e reivindica mudanças na política educacional, de maneira que, a diversidade seja reconhecida e respeitada buscando a superação das desigualdades raciais.
O Movimento Negro contemporâneo acumula uma vasta experiência de lutas, herdada desde o período colonial, como vimos. A trajetória de lutas, ao longo do tempo, vai revelando e cada vez mais evidenciando o processo e as práticas de racismo “peculiar” da nossa sociedade. Embora a luta seja antiga, existem, ainda, muitos desafios a superar, os indicadores sociais/raciais mostram isso. O Movimento Negro não é homogêneo, é plural, com divergências ideológicas e de formas de atuação política, mas, ao mesmo tempo, busca convergir para algumas bandeiras de lutas em comum, como as atuais políticas de ação afirmativa e de luta por uma educação antirracista, em vistas, à constituição de uma sociedade verdadeiramente democrática.
Por meio das denúncias do Movimento Negro é que ficaram evidenciados para a nossa sociedade, entre outros problemas, os entraves de acesso e permanência da população negra no sistema educacional, mais que isso, contribuiu para denunciar a reprodução do racismo no âmbito escolar, quer sejam pelas práticas pedagógicas cotidianas, quer seja pelo currículo escolar eurocentrado que não fomenta a disseminação de outras histórias dos escravizados e da contribuição dos negros na constituição ampla do nosso país.
É, pois, percebendo essa lógica que o Movimento Negro pressiona o Estado para revisão e reformulação dos parâmetros e diretrizes educacionais, reivindica que estabeleça no âmbito escolar uma educação antirracista, fazendo com que a escola cumpra sua função social acerca de constituir sujeitos que (re)conheçam a história e a contribuição de cada povo (sobretudo a do povo negro), contribuindo, assim, para a manutenção de uma sociedade mais justa e equitativa.
Assim, em 2003, o Governo Federal sancionou a Lei 10.639 que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Com o advento dessa lei, o Estado brasileiro reconhece que os moldes escolares não têm contribuído para a superação do racismo, pelo contrário, muitas das vezes, a escola com seu currículo e suas práticas eurocentrados, ratifica as desigualdades raciais. Para Nilma Lino Gomes (2010), a implementação das questões étnico-raciais no currículo escolar é fruto das tensões raciais denunciadas pelo Movimento Negro, que não tem desdobramentos apenas no campo educacional, mas, sim, uma questão política que representa a possibilidade de deslocamentos nas estruturas sociais.
Na atualidade do Brasil, soma-se mais de uma década de políticas de ação afirmativa desenvolvidas em instituições de ensino superior, visando à garantia de acesso de grupos racializados (indígenas, negros) em cursos de graduação, institucionalizada com a aprovação da Lei nº. 12.288/10 (Estatuto da Igualdade Racial), e Lei nº. 12.711/2012 (Lei sobre as cotas nas universidades institutos técnicos federais. Esta lei é um exemplo inequívoco de como a questão racial aglutinou e garantiu acesso a outros grupos sociais minorizados). Entende-se as políticas de ação afirmativa como uma intervenção em tempo delimitado, do Estado ou da iniciativa privada, visando o aumento acelerado da presença de pessoas racializadas em esferas da vida social (educação, política, trabalho) e com vistas à promoção da equidade racial, tal qual como pressupõe uma sociedade democrática.
Diante de todo o exposto, partindo do pensamento da professora Nilma Lino Gomes, o Movimento Negro é também um movimento educador, que produz conhecimentos e saberes, visando a emancipação da população negra, mas, também, de todo o conjunto da população. Pois, à medida que ressignifica e politiza a ideia de raça, indaga também a própria história do Brasil. A discussão sobre raça no nosso país, não se faz de forma isolada. Ela se articula às questões históricas, sociais, culturais, políticas e econômicas (GOMES, 2017). Essa articulação pode contribuir para o deslocamento das estruturas sociais. Ademais, a autora diz, ainda, que o Movimento Negro vem sistematizando saberes, são eles: os saberes identitários (debatendo sobre a questão da raça e ressignificando o conceito), saberes políticos (tensiona o Estado e este passa a abordar e criar políticas e diretrizes a partir das desigualdades raciais) e os saberes estéticos-corpóreos (estética da arte, de sentir o mundo, vivenciar o corpo). Todos esses saberes produzidos estão a serviço da sociedade brasileira, em uma perspectiva de constituição de uma sociedade de bem-estar social.
O Movimento Negro historicamente denuncia que é impossível pensar em uma democracia plena com racismo. Da mesma forma, aponta, em caráter educativo, para a sociedade qual o caminho devemos percorrer para o estabelecimento de uma coletividade que respeita e inclui as diferenças. Enquanto não entendermos o racismo como a raiz das mazelas sociais brasileiras – e que elas se manifestam de forma estrutural e estruturante em todas as nossas relações –, estaremos fadados a viver em uma democracia hipócrita.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. p. 01, 2003.
BRASIL. Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: SECAD; SEPPIR, junho, 2009.
BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino da História afro-brasileira e africana. Brasília/DF: SECAD/ME, 2004.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo [online]. vol.12, n.23, pp.100-122, 2007.
GOMES, Nilma Lino. “Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algumas Estratégias de Atuação”. In: MUNANGA, Kabengele. (org.) Superando o Racismo na Escola. Brasília: MEC, p. 143-154, 2005b.
_______. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas. Cadernos ANPAE, v. 1, p. 1-13, 2010.
_______. Diversidade étnico-racial como direito à educação: a Lei nº 10.639/03 no contexto das lutas políticas da população negra no Brasil. Belo Horizonte: XV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, ENDIPE, 2010(no prelo).
_______. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Vozes, 154 p. 2017.
MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na Escola. Brasília: MEC/SECAD, 2005.
QUEM É ADRIANO ROCHA?
Mestre em Relações Étnico-raciais pelo PPRER/CEFET-RJ e pedagogo pela Faculdade de Educação da UERJ. Atua há mais 15 anos em projetos socioeducativos no terceiro setor. Atualmente, por meio da Gerência de Educação do SESC RJ, lidera projetos com dois eixos principais: divulgação científica e educação antirracista.