Nosso corpo nunca foi uma ilha. A bióloga Lynn Margulis, pioneira da teoria endossimbiótica, demonstrou que até nossas células são comunidades. Seu trabalho provou que as mitocôndrias são descendentes de bactérias que se fundiram a outras células há bilhões de anos. Em suas palavras: “Life did not take over the globe by combat, but by networking” (“A vida não dominou o globo pelo combate, mas pela formação de redes”).
A filósofa e bióloga Donna Haraway expande essa visão com seu conceito de compostos multiespécies, argumentando que somos tecidos não apenas por relações biológicas com micróbios, mas também por laços tecnológicos e culturais. Para ela, a própria noção de “humano” se dissolve quando reconhecemos nossa interdependência radical com outros seres e sistemas.
O antropólogo Tim Ingold, nosso entrevistado desta edição, oferece uma perspectiva ainda mais fluida, descrevendo o corpo como um emaranhado dinâmico de fluxos materiais e narrativos. Para ele, respirar já é prova de nossa natureza relacional: “To breathe is to trace a path through the world” (“Respirar é traçar um caminho através do mundo”).
Os saberes indígenas, como os expressos pelo xamã yanomami Davi Kopenawa, há muito compreendem essa natureza relacional. Em suas tradições, o corpo humano é um receptáculo temporário para espíritos que circulam entre as espécies, e a floresta é entendida como uma extensão do próprio corpo coletivo. E assim como Tim Ingold descreve o corpo como “malha de fluxos”, os povos andinos falam do ayni (reciprocidade) entre montanhas, rios e o sopro humano – onde beber água é incorporar a memória das geleiras. Se Haraway vê nos ciborgues a fusão entre orgânico e tecnológico, os povos originários já entendiam que flechas, cestos e, por que não, até smartphones são extensões do corpo coletivo, não ferramentas externas.
A ciência contemporânea confirma: pelo menos 43% das células no nosso corpo não são humanas – são principalmente bactérias, com números menores de fungos e vírus, juntos formando um microbioma. Bactérias que dialogam constantemente com nossas próprias células, influenciando desde nossa digestão até nossos estados emocionais. Nosso intestino, com seu complexo ecossistema bacteriano, produz a maior parte da serotonina que regula nosso humor.
Tecnologias redefinem nossa corporeidade: os implantes neurais da Neuralink e as próteses biônicas materializam essas fronteiras fluidas. Em 2014, cientistas criaram a primeira bactéria com DNA expandido (Zhang et al., Nature), inserindo bases X e Y além das naturais A, T, C e G – uma revolução que mostra como a vida já é, em si, tecnologia.
Das mitocôndrias aos espíritos xamânicos, das bactérias intestinais às interfaces cérebro-máquina, uma verdade emerge: como resumiu Margulis, “We are walking communities” (“Somos comunidades ambulantes”). O corpo não é um território, mas uma conversa permanente entre biologia, cultura e tecnologia – e escutá-lo é reencontrar nosso lugar no mundo – esse fluxo que nos atravessa e nos reinventa.

Rejane Nóbrega
Rejane Nóbrega atua na idealização e coordenação de projetos para apropriação social do conhecimento científico, a partir das interseções entre arte, ciência e tecnologia. Bióloga e mestre em Genética Marinha, é movida pela convicção de que o conhecimento desperta empatia, alegria e uma apreensão mais profunda do mundo. É curadora da Humanos e assina esta coluna, onde explora a vida biológica como ponto de partida para as humanidades e suas vastas conexões.
FONTES
Margulis, L. (1981). Symbiosis in Cell Evolution
Haraway, D. (2016). Staying with the Trouble
Ingold, T. (2011). Being Alive
Kopenawa, D. & Albert, B. (2013). The Falling Sky
Sender et al. (2016). PLOS Biology
Yano et al. (2015). Cell
Zhang et al. (2014). Nature (DNA expandido)
Neuralink White Paper (2023). FDA Approval