Papai foi diagnosticado com câncer terminal. Ana chega em casa do hospital, lava a louça do jantar, acumulada dos três dias anteriores, coloca comida para Tufinho, passa meia hora chorando, espremida no sofá e, finalmente, abre a torneira da pia e começa a girar o dedo na água que vai enchendo.
A janela se abre após dois minutos.
— Oi, Hannah — diz ela para a moça de cabelo verde e encaracolado do outro lado da janela. Tenta sorrir. Não consegue. — Papai tá com câncer terminal.
— Ana, querida! Eu sinto muito! — Hannah para o que está fazendo (digitando um número em uma agenda eletrônica, que pelo visto nunca saiu de moda no verso dela) e arregala os olhos. Eles estremecem na água da pia, brilhosos. — O papai daqui se foi tem tempo, mas foi num acidente.
— Alguma cura aí do seu lado? — Ana pergunta, já sabendo a resposta. Por que Hannah sentiria muito se o câncer fosse uma doença curável no verso dela?
Hannah balança a cabeça.
— Olha, mas eu vou perguntar pras outras na linha!
— Obrigada. Fico no aguardo.
“Penhascos Cósmicos” na Nebulosa de Eta Carinae (Imagem NIRCam).Ana abre o ralo da pia e Hannah se vai numa espiral.
Hannah morde os lábios. Sente quase como se aquela outra versão dela — de um verso onde as pessoas não parecem curtir tanto tingir o cabelo de verde — fosse parte dela. Vai até o jardim e cava um buraco de cinco centímetros na plantação de batatas. Os carros voando acima fazem o seu zum-zum-zum típico do fim de tarde. Tufinho vem farejar o que ela está aprontando e enfia o focinho na poça interdimensional que se forma ali.
— Oi, Anne — diz Hannah, repousando uma mão na cabeça de Tufinho. — Então, queria te perguntar uma coisa.
“Penhascos Cósmicos” na Nebulosa de Eta Carinae (Imagem NIRCam).Câncer! A palavra maldita. Anne se pergunta em quantos versos aquela doença é tão repugnante. Será que não tem um lugar da linha de versos onde ela tenha sido erradicada, como uma estrofe mal escrita arrancada de um poema? Anne até deixa rolar uma lista enorme em suas lentes para buscar artigos científicos recentes. Procura material da UFRJ até da UNEEI, a Universidade da Nova Estação Espacial Internacional. Desiste e abre a terceira gaveta de seu armário, de cima pra baixo. Rabisca traços semi-aleatórios com um giz até Anna aparecer.
Anna fala com Hanne, mas Hanne é presa política em um nefasto regime ditatorial e não pode ajudar muito. Porém, antes de cortar a conexão, Anna empurra um facão e um martelo pela janela. Han-ne os esconde debaixo do colchão e fecha os olhos. Vantagens de se ter uma janela dentro de si.
“Penhascos Cósmicos” na Nebulosa de Eta Carinae (Imagem NIRCam).— Oi, Any.
Any está em uma viagem interplanetária para iniciar as pesqui-sas na superfície de Europa, a lua de Júpiter, quando seu monitor pisca e abre uma janela com Hanne.
— Você não tava presa, querida?
— Não mais — Hanne levanta um martelo e abre um sorriso. — Mas quero saber o seguinte: aí vocês já tem a cura pro câncer?
Nada. Pra muitas outras doenças, sim. Seu pai conseguira regenerar uma mão ali e desde os superinvestimentos em ciência e educação, logo após a tentativa golpe militar frustrada de 1964, a medicina avançara a passos largos. Mas encontrar a cura da maldita? Não. Seu pai morrera da mesma há dois anos.
Any abre um terminal e regula a frequência correta para falar com Annie.
Mas Annie não está lá. É o fim da linha. Um poema inacabado, com um verso expurgado. O mundo de Annie se acabara há uns anos em uma catástrofe climática. Mas ela deixara um bilhete para a vizinha Any, coordenadas talhadas em uma pedra. De todas as coisas, uma pedra há de sobreviver em um mundo esvaziado, não?
Nenhuma delas jamais conseguira cruzar uma janela, mas sempre foram capazes de trocar objetos. Any pega o pedaço de pedra marcada e passa para Hanne, que passa para Anna, que passa para Anne, que passa para Hannah. Por fim, Ana puxa a pedra pela pia da cozinha.
Ana sabe para onde as coordenadas apontam, para o paredão de pedra em uma rampa abaixo do Museu Nacional.
Ao chegar lá, encosta na parede fria, que estremece como água parada na pia. Ao redor dela, dezenas de janelas começam a se abrir…
Centenas…. Não sabe se alguma daquelas Anas vive em um verso com a cura do câncer, nem se seu paizinho vai escapar dessa. Mas sabe que sua rede de suporte é um poema inteiro, composto por Anas e para Anas.
QUEM É RENAN BERNARDO
Renan Bernardo é escritor de ficção científica e fantasia do Rio de Janeiro. Escreve em português e inglês. Suas histórias já foram publicadas em português, inglês, italiano, alemão e japonês.
Sua história de ficção climática “O rio que passou em minha vida” foi lançada pela Editora Dame Blanche em 2021, mostrando um Rio de Janeiro repleto de canais, assolado pelas consequências de uma profunda crise climática. Sua história “A Norma Aqui de Cima” foi finalista do Prêmio Odisseia 2020 e do Argos 2020. Em inglês, seu conto “Look to the Sky, My Love” foi nomeado ao Utopia Award 2023.
Possui publicações em inglês na Apex Magazine, Solarpunk Magazine, Escape Pod, Podcastle, dentre outras. Em 2021, também foi selecionado no concurso de ficção climática Imagine 2200. Sua coletânea de histórias solarpunk, Different Kinds of Defiance, será lançada em 2024 nos Estados Unidos.
Pode ser encontrado no Twitter (@Renan-Bernardo) e no seu site: http://ptbr.renanber-nardo.com, onde também tem uma seção dedicada a escrita em inglês.