Apalavra “teia” é poderosa. Ela se refere ao tecido formado pelo entrelaçamento dos fios no tear, uma trama. E, mais do que isso, sugere conexões. O conceito de teia e interconexão ressoa fortemente o recente boom de fungos na cultura pop, refletindo uma fascinante rede de relações.
“Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro…
Sou presa do meu suporte.”
— Fernando Pessoa
Além da série The Last of Us e do documentário da Netflix Fungos Fantásticos, o conceito de “decorgumelos” também ganhou destaque na moda e decoração no Pinterest em 2023. Björk, cantora e compositora islandesa, é uma artista que anda muito envolvida com a temática. Seu trabalho mais recente no tema, foi a narração de um filme 3D para IMAX sobre fungos, Fungi: Web of Life (2023), apresentado pelo biólogo britânico especialista Merlin Sheldrake e filmado principalmente em time-lapse.
O seu décimo álbum, Fossora (2022), Björk também explora de uma forma única o universo dos fungos e as paisagens islandesas. Com sons inovadores e videoclipes imersos na estética da natureza, o álbum destaca temas da coletividade, como na faixa “Atopos”, que aborda a conexão: “Nossa união é mais forte, nossa união é mais forte que nós. A esperança é um músculo que nos permite conectar”. O título Fossora é derivado do latim fossor, que significa “aquele que cava”, e reflete a busca da artista por sua ancestralidade.
O conceito de cavar a terra em busca de nossas raízes é fascinante e ganha uma nova dimensão quando o associamos às “hifas”. No reino dos fungos, as tramas de filamentos são chamadas de “hifas”, e o conjunto delas forma o “micélio”. Ao contrário das raízes das plantas, as hifas se estendem em várias direções, criando uma vasta rede subterrânea que pode se espalhar por quilômetros, criando uma complexa rede de conexões invisíveis. O que vemos na superfície, como fungos e cogumelos, é apenas uma fração dessa rede complexa.
Essa visão de interconexão e ancestralidade ressoa a reflexão de Ailton Krenak, filósofo indígena brasileiro, em seu livro Futuro Ancestral. Krenak discute a necessidade urgente de restaurar a harmonia com o meio ambiente e resgatar tradições para garantir um futuro sustentável. Ele nos lembra que nosso futuro está intimamente ligado ao passado, assim como os rios, que são testemunhas de histórias ancestrais.
Na rede de conexões invisíveis que é a vida, temos nossas “hifas” — as conexões que criamos e as linhas que usamos para compor nossa história. Essas linhas são fundamentais para caminhar, observar, contar histórias, ajudando a tecer a trama da nossa vida. Nos filamentos invisíveis, ocorrem mudanças quase imperceptíveis dentro de nós. Ao enfrentarmos desafios semelhantes, não seremos mais os mesmos. Mudar é decompor o que não serve mais para iniciar um novo ciclo.
Os fungos, como decompositores de matéria orgânica, transformam o que decompõem em nutrientes. Em períodos de mudança, cavamos fundo para decompor nossas dores e transformá-las em algo novo. Esse crescimento subterrâneo é invisível a olho nu, mas essencial.
Em seu livro A Trama da Vida, Merlin Sheldrake nos oferece uma nova perspectiva sobre a vida por meio dos fungos. No epílogo, ele descreve como sua visão do mundo mudou ao compreender que os fungos desempenham papéis complementares aos compositores: “Agora havia flechas que apontavam em ambas as direções ao mesmo tempo. Compositores fazem; decompositores desfazem. E, a menos que decompositores desfaçam, não há o que os compositores possam fazer. Essa ideia mudou minha maneira de entender o mundo”.
Os fungos nos ensinam sobre viver e morrer, sobre inícios e fins de ciclos, e sobre os relacionamentos e as conexões que formamos. Assim como os fungos coabitam a existência, o tempo é a partitura dessa grande orquestra que toca entre nossas decomposições e composições. Cada perda nos lembra que somos orgânicos, que há algo pulsante que nos conecta por dentro e por fora, por cima e por baixo da terra. As linhas que usamos para tecer a trama da nossa vida estão ligadas a outras, e nossas ações importam e fazem a diferença. Que possamos tecer belezas e estar abertos a novas conexões.
“É da essência da vida que ela não comece aqui ou termine ali, ou conecte um ponto de origem com um destino final, mas sim que ela continue encontrando um caminho através da miríade de coisas que se formam, persistem e se quebram em suas correntes. A vida, em suma, é um movimento de abertura, não de fechamento.” — TIM INGOLD
REFERÊNCIAS
• PESSOA, Fernando. “A aranha do meu destino.” Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/3262. Acesso em: 26/07/2024.
• INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. London: Routledge, 2011. (Tradução nossa.)
• KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
• SHELDRAKE, Merlin. A Trama da Vida. Tradução de Roberto Magalhães. São Paulo: Intrínseca, 2022.

Ana Paula Simonaci Valentim
É pesquisadora que se interessa tanto no que preservamos do passado quanto pelas inovações que projetam o futuro. Doutora e mestre em memória social pela UNIRIO, atualmente realiza pós-doutorado investigando as relações entre cartunistas, patrimônio e imprensa, e como essas forças moldam nossas memórias e constroem futuros. É curadora da Revista Humanos, dedicada a cruzamentos entre arte, ciência e tecnologia, onde também assina a coluna Futuros, espaço de reflexão sensível sobre os tempos que virão — e os rastros que deixamos neles.