Oprimeiro álbum de Jonathan Ferr, de 2019, se chama Trilogia do amo”. O segundo, de 2021, foi batizado de Cura. Seu terceiro e mais recente disco, de 2023, é Liberdade. Amor, cura e liberdade — três conceitos que podem ser lidos como o tripé de sustentação da música desse pianista que partiu do Morro da Congonha, em Madureira, rumo às estrelas, com as roupas e as armas do afrofuturismo. É assim que, no segundo semestre de 2024, ele chegou, pela segunda vez, ao palco do Rock In Rio; viajou para a feira Womex, em Manchester, e lançou no Manouche, casa no Jardim Botânico, a “Noite de magia”, um evento de reflexões baseadas na cosmologia negra.
Amor é a base. Ele estava lá quando, ao lado dos pais, Jonathan assistia todos os sábados ao programa Pianíssimo, de Pedrinho Mattar. “Aquilo me tocava. Porque eu estava ali recebendo o carinho do meu pai e da minha mãe, que assistiam ao programa, enquanto eu via um pianista tocando jazz. Quando estou no piano hoje, sinto esse lugar do afeto, do aconchego. É a memória afetiva que faz meu corpo entender essa relação piano, música e afeto materno, paterno, que é nosso afeto primário, né?”, diz o músico. Ele sintetiza: “Eu costumo falar que o piano é o amor que se realiza no agora”.
A cura também se relaciona com o presente, Jonathan explica: “Os Huni Kuin falam uma frase que, em livre tradução, seria: ‘A cura está acontecendo agora, neste momento’. Enquanto eu profiro essas palavras, a magia está acontecendo. E eu tento me relacionar com o piano a partir desse processo curativo, de me integrar comigo mesmo. E a partir daí, a magia da própria música acaba reverberando esse processo para o outro, para as pessoas que estão ouvindo. Foi assim que a música entrou na minha vida e foi se organizando no meu intelecto, no meu corpo”.

O impulso pela liberdade — terceira dimensão conceitual do tripé — se manifesta na sua vida desde muito cedo. “Sempre fui um jovem subversivo, questionador”, conta Jonathan. Criado na Assembleia de Deus, já na adolescência ele começou a busca espiritual que o trouxe onde ele está hoje. Frequentou a igreja Batista e outras denominações protestantes antes de abandonar os cultos aos 22, 23 anos. “Já estava envolto em outros mistérios que me interessavam, como o budismo e a filosofia”, lembra o pianista. “Estava lendo muito Nietzsche. O livro dele Humano, demasiado humano mudou a minha maneira de perceber o mundo. E a partir dali eu fui experimentar outras vivências, entender que o mundo é muito grande pra eu estar no mesmo lugar, vivendo a mesma coisa, acreditando do mesmo jeito”.
“Eu costumo falar que o piano é o amor que se realiza no agora.”
O chamado da liberdade, enfim — chamado que Jonathan abraçou na música. O artista sempre pensou em ampliar o alcance do jazz, liberá-lo das amarras do elitismo, da ideia de “música difícil”. “Eu saía de Madureira pra ir pro Leblon pra ouvir jazz. Depois, tinha que sair correndo pra pegar o metrô, bem na hora que o lance tava começando a ficar bom”, lembra o músico. “Eu ficava muito frustrado, pensando: ‘Ou eu deveria morar por aqui ou eu deveria ter acesso a esse tipo de som lá. Como é que se equaliza isso?’. Mais tarde, um pouco mais consciente, até politicamente, desse processo todo, eu quis, como uma espécie de missão e propósito, democratizar um pouco esse acesso”.
Os caminhos que Jonathan trilhou na direção de democratizar o jazz foram dois. Na dimensão horizontal, buscando espalhar territorialmente, ele provocou os amigos músicos a se apresentarem nas periferias, produzirem pensando nelas. Na dimensão vertical, ou seja, indo mais fundo, o pianista começou a refletir sobre a natureza mesmo de seu trabalho. “Queria que minha música fosse palatável, que as pessoas pudessem entender. Não queria que fosse uma música que para o cara compreender ele tivesse que ter, sei lá, 10 mil vinis de jazz em casa. Minha ideia era uma coisa que a pessoa ouvisse e sentisse. Eu faço música pra galera sentir. Mais do que ouvir, quero que a galera sinta a música”.

Jonathan costuma chamar, de maneira geral, a música que faz, “mais palatável”, de jazz urbano. Música de quem vive a rua, feita para quem vive a rua. Seu trabalho junta jazz, elementos de hip hop e diferentes vertentes de música eletrônica. “Sino da igrejinha”, faixa de seu segundo disco, é um ponto de umbanda lido numa linguagem que flerta com o cool, o jazz e o clássico. Já teve em seus álbuns colaborações de artistas como Luedji Luna, Rashid, Serjão Loroza e Donatinho.
Jonathan expõe nas roupas a exuberância de raízes negras e desejo de futuro de sua música. Começou a entender que a moda era expressão quando, ao responder para um amigo que não ligava para roupas, “e sim para a música”, foi provocado com a pergunta: “Você acha que Djavan o contrataria se você chegasse pra ele vestido desse jeito que está agora?”. A pergunta ficou ecoando na cabeça do pianista, que a partir desse incômodo começou a buscar informações sobre moda e a tratá-la como expressão de sua individualidade, como pessoa e como artista.
“Percebi que quando eu me empoderei nesse lugar da moda, as pessoas passaram a me dar mais ouvido”, conta Jonathan. “Até então era só um cara que tocava piano. Era só mais um no meio da multidão. E aí, quando eu me empoderei, eu me destaquei. A moda me empoderou muito nesse processo, mais do que a música. A música me trazia outras coisas, mas foi pela moda que me senti bonito, me senti capaz, confiante pra transitar no mundo, nos espaços”.
Como a música, as roupas tocam em lugares que vão muito além da vaidade. “Eu quero celebrar a minha ancestralidade. Meus antepassados foram escravizados, roubados da África. Eram obrigados a ficar descalços. Tinham vestes que era o que sobrava pra poderem usar. Eu sou fruto do sonho deles. Posso me vestir da maneira que eu quiser, sempre boto umas roupas que me lembrem o reinado que nós poderíamos ser. O ambiente afrofuturista pratica um exercício chamado ‘imaginação radical’. É levar sua mente lá atrás, pensar quem eram essas pessoas, seu avô, sua bisavó, sua trisavó…. E a partir dessas construções, pensar mesmo o que eles poderiam ter sido se os sonhos deles não tivessem sido interrompidos. E eu sempre penso que trago em mim uma linhagem real. E aí subo ao palco me comportando como quem tem essa linhagem real”.

“O ambiente afrofuturista pratica um exercício chamado ‘imaginação radical’. É levar sua mente lá atrás, pensar quem eram essas pessoas, seu avô, sua bisavó, sua trisavó…. E a partir dessas construções, pensar mesmo o que eles poderiam ter sido se os sonhos deles não tivessem sido interrompidos.”
Jonathan Ferr nasceu em 27 de abril de 1987, no Morro da Congonha, favela de Madureira. Deu seus primeiros passos no piano ainda criança, num teclado que seu pai tinha comprado e abandonado. Ali, tirava músicas de compositores como Tom Jobim. Mais tarde, aos 15 anos, numa aula de música na escola, ouviu “A love supreme”, de John Coltrane, que foi um marco na sua forma de compreender a música e uma influência na sua produção.
Inspirado por artistas como Sun Ra e Kamasi Washington, além de suas vivências suburbanas de funk, charme e hip hop, Jonathan desenvolveu uma linguagem de raízes negras e fluidez contemporânea. Tem feito shows pelo mundo e em importantes festivais brasileiros, como Rock in Rio e The Town.

QUEM É O AUTOR?

Leonardo Lichote
Jornalista e crítico de música. Trabalhou n’O Globo e hoje colabora com publicações como Folha de S. Paulo, Piauí e Traços.