O nosso conhecimento sobre o reino dos fungos é limitado e, portanto, rico em oportunidades de novas descobertas. Cientistas estimam que descrevemos apenas um décimo da diversidade fúngica. A grandeza dessa diversidade depende tanto dos diversos ambientes e papéis que eles possuem – como o de decompositores e recicladores de compostos orgânicos – quanto de seus mecanismos biológicos – como as Starships, que são elementos de DNA móveis que moldam o genoma dos fungos durante seu processo evolutivo (1).
A forma atual como estudamos a biodiversidade é muito mais avançada do que na época de Carlos Lineu, um dos pais da classificação científica, quando métodos avançados, como sequenciamento de DNA e algoritmos complexos para estudar e definir filogenia, ainda não haviam sido desenvolvidos. A maneira atual é bastante dependente de métodos de laboratório e sequenciamento de DNA. Em poucas palavras, quando coletamos amostras de um solo, por exemplo, extraímos o DNA de todos os seres vivos que vivem ali: plantas, fungos, insetos, bactérias, entre outros. Essa complexa mistura de DNAs é sequenciada por um método estabelecido que utiliza sequências de DNA muito conhecidas. Assim, identificamos uma boa quantidade dos seres presentes naquela amostra.
Algumas linhagens de fungos são comumente identificadas em amostras ambientais, por meio da presença do seu DNA, como é o caso do Clone de Solo Grupo 1. Esse grupo é encontrado em diversos estudos contendo dados de sequenciamento de amostras ambientais. Entretanto, não sabíamos nada sobre a aparência destes fungos, porque eles não haviam sido observados na natureza. A equipe da cientista Anna Rosling conseguiu cultivar um dos membros desse grupo, o Archaeorhizomycete finlayi (2). Ao cultivá-lo, eles descobriram que o fungo cresce em açúcares como fontes de carbono únicas – indicando um comportamento de decompositor –, diferentemente dos resultados gerados por dados de sequenciamento, que sugeriram que o fungo dependia de nutrientes produzidos por raízes de plantas. Essa história mostra a importância de obter informações que vão muito além das sequências de DNA e que são dependentes do cultivo desses espécimes.
Tradicionalmente, quando uma nova espécie é descoberta, estabelece-se seu “tipo”, um espécime que fica então preservado em um museu. Este tipo será sempre atrelado a este espécime de planta ou fungo, por exemplo. Uma das discussões atuais no mundo da nomenclatura fúngica é se sequências de DNA deveriam ser aceitas como novos tipos. Isso significaria mudar regras fundamentais da área, permitindo que dados genéticos sejam usados como referência ao em vez de espécimes. Alguns argumentos importantes contra essa mudança são que os tipos derivados de dados estariam submetidos a diversos erros intrínsecos à técnica de sequenciamento, podendo propiciar novas “falsas” espécies e gerar listas de espécies pobres em informações. É razoável concordar que essa mudança ainda não deve ser implementada, como argumentam dezenas de micólogos renomados (3), pois não solucionaria os atuais problemas da nomenclatura e poderia promover uma enorme confusão de novas espécies que talvez nem existam.

A AUTORA

Débora Parrine
Débora é tradutora e bióloga, possui mestrado em Biotecnologia pela Universidade de São Paulo e doutorado em Engenharia de Biorrecursos pela Universidade McGill (Canadá). Atualmente mora na Suécia, onde é pesquisadora nas áreas de Evolução e Proteômica na Universidade de Uppsala, e estuda a evolução dos plastídios. É apaixonada por ciência e natureza, mas principalmente pelo seu gato Cenizas.
FONTES
1. Gluck-Thaler E et al. Giant Starship Elements Mobilize
Accessory Genes in Fungal Genomes. Mol Biol Evol;
39(5):msac109 (2022)
2. Rosling A et al. Archaeorhizomycetes: Unearthing an ancient class of ubiquitous soil fungi. Science 333,
876-879 (2011).
3. Zamora JC et al. Considerations and consequences of allowing DNA sequence data as types of fungal taxa. IMA
FUNGUS 9(1) 167–175 (2018).
Ao refletir sobre a percepção atual dos fungos, recordei meu primeiro contato com eles. Em 14 de maio de 2014, precisei encomendar uma tela em uma molduraria no centro histórico de Manaus. Enquanto discutia as dimensões, meu celular tocou. Uma voz feminina disse: “Oi, Hadna, estou na frente do seu ateliê!” Senti um frio na espinha, pois estava a quilômetros de distância. Respirei fundo e admiti: “Noemia! Nossa! Esqueci da nossa reunião”. Mesmo com a situação desajeitada, prometi chegar em 10 minutos. Corri e peguei o primeiro táxi. Ao encontrar Noemia, uma mulher de meia-idade com traços japoneses e visivelmente desapontada com meu lapso, felizmente conseguimos conectar nossas ideias e habilidades mesmo assim. Eu estava diante da renomada pesquisadora de cogumelos do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA), dra. Noemia Ishikawa Kazue. Esse encontro transformou minha trajetória pessoal e profissional.
“Olhar a floresta de baixo para cima”, ou melhor, “de baixo para baixo” – essas são algumas das frases de Noemia Kazue sobre o modo como vemos o que está à nossa volta e, principalmente, a forma como pensamos a vida. Passados 10 anos de convivência com ela, cada vez mais emergindo neste assunto, consigo perceber a crescente procura, fascinação e curiosidade sobre os bastidores da micologia. Pesquisadores têm influenciado projetos inovadores além de artigos científicos. Ao caminhar pela floresta Amazônica e encontrar uma formiga-zumbi, esse fenômeno inspira criações como a série The Last of Us ou a música “Luzes da Floresta”, de Ellen Fernandes, que transporta os ouvintes para uma Amazônia noturna com fungos bioluminescentes. Os conhecimentos dos indígenas Yanomami, que complementam sua alimentação com cogumelos comestíveis da Amazônia, agora estão presentes em pratos da chef Débora Shornik. Os fungos nos ensinam com suas múltiplas relações e nos ajudam a enxergar novas perspectivas. O mundo está cada vez mais interessado em compreender “A Trama da Vida”, proposta no livro de Merlin Sheldrake. Pesquisadores de diversas áreas, como arte, alimentação, medicina, jornalismo, turismo, tecnologias, filosofia, design, moda e empreendedorismo, ficam instigados ao conhecer a interação dos fungos com plantas, animais e até mesmo fenômenos climáticos.
Basta um fio de micélio para nunca mais se ver a vida como de costume. Não é só ciência, não é apenas sobre cogumelos. Há uma inteligência natural bem próxima dos nossos pés, renovando a vida incansavelmente. Os fungos estão no ar. Eles estão interagindo com você neste exato momento. Mesmo invisíveis, se fazem necessários. Conhecer o mundo fungi é essencial para compreender como vivemos. A floresta, nossa grande Matrix, ainda que milenar, tem a internet mais veloz do mundo. Portanto, caso você receba o chamado para conhecer mais sobre esses organismos, ainda que não esteja preparado e se veja distante do assunto, não adie este encontro, pegue o primeiro táxi que passar e conecte-se a esta extraordinária teia de saberes.

A AUTORA

Hadna Abreu
Nasceu em 1989 na cidade de Manaus, Amazonas. Graduada em Artes Visuais na Universidade Federal do Amazonas, dedica-se ao desenvolvimento de ilustrações, exposições, curadoria e gestão cultural.
Como ilustradora e artista visual desenvolveu trabalhos nas publicações: Embaúba: Uma Árvore e muitas vidas (2016); Cogumelos: Enciclopédia dos Alimentos Yanomami (Sanöma) (2016); Peixes, Crustáceos e Moluscos: Enciclopédia dos Alimentos Yanomami (2016); Brilhos na Floresta (2019); Puu naki thëãoni: o conhecimento Yanomani sobre abelhas (2021); Exposição Amazônia ao Cubo (2021); 100 primeiros dias de governo: propostas para uma agenda integrada das Amazônias (2022); Cartilha Micélio – Sumaúma Jornalismo (2023); Proposta Para as Amazônias: Uma Abordagem Integradora – Uma Concertação pela Amazônia (2023). Recentemente ilustrou o projeto “mais-que-humanes” – Sumaúma Jornalismo (2023).
FONTES
Referências citadas no texto para embarcar nesta jornada na Amazônia:
• Noemia Kazue: https://www.youtube.com/watch?v=euikTbDziXE
• Livro Brilhos da Floresta: https://ppbio.inpa.gov.br/Livros/Brilhos_na_Floresta
• Ellen Fernandes: https://www.youtube.com/watch?v=jikrb6RAGWI
• Cogumelos Yanomami: https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/publications/YAL00024.pdf
• D é b o r a S h o r n i k : h t t p s : // r o g e r i o p i n a .com/202 1 / 03 / 1 2 /caxiri-lanca-risoto-com-cogumelo-yanomami/